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O não lugar da medicina na psicanálise: do olhar na clínica à clínica da escuta

Texto escrito pela psicanalista Gesiane Gonçalves. Pós-doutora em Processos de Subjetivação na linha de pesquisa Processos Psicossociais pela PUC Minas. Doutora em Estudos Psicanalíticos, na linha de pesquisa Conceitos Fundamentais em Psicanálise e Investigações no Campo Clínico e Cultural pela UFMG. Mestre em Psicologia pela PUC Minas. Especialista em Arte e Educação. Professora das especializações do Instituto ESPE e autora de livros como: Corpo e clínica psicanalítica: teoria e prática e Psicanálise e psicopatologia: olhares contemporâneos.


A problemática do corpo é tanto ponto de interesse comum entre a medicina e a psicanálise quanto ponto essencial nas distinções epistemológicas entre essas duas áreas. Lacan (1966, p. 8) define O lugar da psicanálise na medicina como marginal por parte dos médicos e extraterritorial por conta dos psicanalistas. Os motivos dessas definições são bem explicados pelo autor; por ora, nos interessa enfatizar tais distinções a fim de assegurar a especificidade da clínica psicanalítica, que é por onde conduzimos nossa práxis.


Ao comentar sobre esse lugar da psicanálise na medicina, Lacan cunha a expressão falha epistemo-somática apontando para um erro na relação da medicina com o corpo ao desconsiderar a dimensão do sujeito e do gozo, o que acarreta no desconhecimento simbólico do ser em relação à sua doença. A indelével atualidade do pensamento lacaniano nesse colóquio, organizado por Jeanne Aubry, instiga o questionamento acerca dos efeitos do desenvolvimento tecnocientífico, tão presente nos dias que correm, salientando sobre a necessidade de atingir aquilo que realmente nos afeta. São dele as palavras: “vamos nos perguntar sobretudo em que isto concerne àquilo que existe, ou seja, nossos corpos” (Lacan, 1966, p. 11).


Importante destacar, nesse momento, o ponto de vista clínico lacaniano que nos orienta com algumas balizas: a demanda, o desejo e o gozo do corpo que confluem em uma dimensão ética. Sendo a demanda apontada como a dimensão em que se exerce a função médica e que se difere, às vezes até se opõe àquilo que se deseja, o psicanalista demarca aí a estrutura da falha existente entre a demanda e o desejo. Quanto ao corpo, ele enfatiza sua relação com o gozo dizendo que o gozo é experimentado pelo corpo e que há aí uma tensão, um forçamento.


A forte tendência de se classificar o sofrimento psíquico, dentro de uma lógica nitidamente taxonômica, não é inteiramente nova. Os empenhos de categorização dos pacientes por meio dos sintomas invariantes, a tendência a se agrupar afecções semelhantes em um mesmo grupo para daí realizar o estabelecimento de tipos e subtipos de quadros clínicos, é uma estratégia que se confunde com o próprio nascimento e desenvolvimento da Psiquiatria, desde o século XVIII (Bercherie, 1989; Álvarez et al, 2004).


Em O nascimento da clínica, Foucault (1977) mostra como se deu a organização do saber médico ao realizar uma crítica às estruturas políticas e epistemológicas que regem a racionalidade do mundo contemporâneo. O filósofo salienta que o século XIX foi um marco na evolução do saber médico, momento em que a medicina buscou legitimar-se pela utilização do método experimental característico das ciências físicas, o que fez com que ela pudesse se apresentar como medicina científica. Uma grande influência na concretização desse ideal é o trabalho do fisiologista Claude Bernard (1813-1878). Contudo, no final do século XVIII, as observações de Marie François Xavier Bichat (1771-1802), o pai da anatomopatologia moderna, dão início a uma clínica empirista calcada ao que se apresenta ao olhar, “um olhar que se fixa sobre o campo do corpo”, como menciona Lacan (1966).


No início do século XIX tem-se uma reativação do pensamento classificatório e nosológico calcado no fundamento da observação de superfícies perceptíveis. “Mas como é possível ajustar a percepção anatômica à leitura dos sintomas? Como poderia um conjunto simultâneo de fenômenos espaciais fundar a coerência de uma série temporal que lhe é, por definição, inteiramente anterior?” Esse questionamento de Foucault (1977, p. 152) subsiste na crítica feita por Lacan (1966) ao mencionar a passagem da medicina para o campo da ciência com sua exigência experimental.


Ao ater-se somente ao que é dado ao olhar na forma simples de sua existência fenomenológica, o método DSM não pode dizer o que é um encadeamento, um processo na ordem temporal. Ao contrário de uma clínica que escuta os sintomas e procura o corpo derivado do significante, o DSM só perscruta os sinais de um cadáver derivado da anatomofisiologia. Com Bichat e seus sucessores, a problemática se voltou mais para o futuro da doença do que para o seu passado. Conduzindo a uma práxis clínica que culminará no que hoje testemunhamos com frequência: um discurso dominante em que presente e futuro contam mais do que a memória.


A nova episteme médica cria uma técnica que artificiosamente faz aparecer um signo onde não há sintoma: “O olhar médico não se dirige ao corpo concreto, mas aos signos que diferenciam uma doença da outra” (Foucault, 1977, p. 7). A semiologia deixa de ser uma leitura para se tornar um conjunto de técnicas que constitui aquilo que o filósofo denomina de anatomia patológica projetiva. Para a anatomia patológica de Bichat “o que não está na escala do olhar se encontra fora do domínio do saber possível” (Foucault, 1977, p. 191). Não é isso análogo ao que Lacan denomina de falha epistemo-somática?


O método diagnóstico do DSM se baseia em signos, no sentido de um sinal provido de significação. Assim sendo, na semiologia médica a febre pode ser um sinal/signo de infecção. A semiologia médica e a psicopatológica tratam particularmente dos signos que indicam a existência de sofrimento mental, trans- tornos e patologias (Dalgalarrondo, 2008). Para Foucault, a racionalidade da ciência médica não só muda o conceito de sintoma para signo, o qual deve ter significado para o médico, como dá início à apreciação estatística das manifestações clínicas. Na definição foucaultiana encontramos o signo desempenhando um papel de desvio: “ele não é mais o sintoma falante, mas aquilo que substitui a ausência fundamental de palavra no sintoma” (Foucault, 1977, p. 182). Como herança iluminista, a clínica médica passa a ser regida pela observação, sendo o olhar do médico prevalecente em detrimento do sujeito que deve ser subtraído com suas qualidades particulares em prol do conhecimento da doença.


Salientando a relevância desse momento da constituição do saber médico, o filósofo afirma que as descobertas de Bichat “não podiam designar a essência da doença, que era invisível” (1977, p. 152); essa concepção leva ao surgimento de novas tecnologias e práticas sobre os corpos dos indivíduos, todas pautadas em uma análise minuciosa do olhar sobre o doente. Essa clínica do olhar se utiliza de signos e sinais capazes de determinar a doença do indivíduo desconsiderando a dimensão do sintoma, sintoma que, desde Freud, se apresenta como o guardião de um sentido, marcando as bases éticas da psicanálise de escutar o sujeito em sua singularidade.


O pintarroxo lacaniano


Os signos de maior interesse para a psicopatologia são os sinais comportamentais objetivos, verificáveis pela observação direta do paciente. Neste contexto, os signos podem ser lidos como sinais que, por sua vez, são definidos como dados elementares das doenças que são evocados pelo examinador. Jacques Lacan (1956/1981), destaca a diferença entre o simbolismo estruturado na linguagem do signo natural. O autor lembra que todo fenômeno que participa do campo analítico apresenta a duplicidade essencial do significante e do significado: “o significante tem aí sua coerência e seu caráter próprios, que o distinguem de qualquer outra espécie de signo” (p. 192). Compreendemos com suas elaborações que há uma significação natural, qual seja, o sinal. Tal como o sinal biológico ilustrado pelo autor na cor vermelha da plumagem do pássaro pintarroxo, temos o sinal, ou melhor, os sinais indicativos de distúrbios e transtornos mentais utilizados como critérios diagnósticos pelo DSM.


Retomando o raciocínio de Lacan, vemos que esse sinal natural não necessita do reconhecimento do Outro para existir. Em outro exemplo, o autor menciona o rasto na areia para traçar a distinção entre o sinal e o objeto: “o rasto é justamente o que o objeto deixa” (Lacan, 1956/1981, p. 192). Seria essa uma distinção possível entre o sinal e o sintoma? Sendo que o significante se distingue do sinal, poderíamos admitir que o sinal está para a relação imaginária assim como o sintoma está para a relação simbólica. O sintoma fala em sua significância, ele é dirigido a um Outro, diferentemente do sinal, que nada diz.


Com a psicanálise, ocorre uma mudança que questiona a clínica do olhar, baseada somente nos fenômenos observáveis em detrimento dos aspectos subjetivos. Nesta perspectiva clínica, o diagnóstico passa a ser estrutural e não mais fenomenológico. “Por diagnóstico estrutural podemos entender como um diagnóstico que se dá a partir da fala dirigida ao analista, logo, sob transferência, onde os fenômenos vão se orientar com referência ao analista como um operador e não como pessoa” (Figueiredo; Machado, 2000, p. 67).


Constelações psíquicas


Na clínica da escuta psicanalítica, o sintoma se articula às determinações inconscientes como uma instância que demarca a imprecisão e o campo do discurso do Outro capaz de agir na determinação do sujeito. Por isso, o sintoma dever ser tratado pela fala, reintroduzindo aquilo que fora descartado pela medicina, ou seja, o aspecto subjetivo. A respeito da singularidade do sintoma, Pinto (2008) dá um exemplo esclarecedor: “[...] um sintoma pode ser aparentemente idêntico para todos os sujeitos, como um TOC9, por exemplo. Porém, o sentido é contingente, particular a cada um. Não existe uma maneira de fazer um protocolo psicanalítico!” (Pinto, 2008, p. 76).


Está posta aqui a especificidade do diagnóstico psicanalítico que opera exclusivamente com a fala buscando aquilo que Freud (1916-1917) já havia postulado, a saber, que o sintoma tem um sentido e estabelece uma conexão com a vida de quem o produz. Além disso, Freud (1913) descreve a função do diagnóstico advertindo quanto ao risco da mecanização da técnica, salientando “a extraordinária diversidade das constelações psíquicas [...], a plasticidade de todos os processos mentais e a riqueza dos fatores determinantes de um sintoma” (Freud, 1913/1980, p. 164). As recomendações sobre a técnica da psicanálise sinalizam para o risco que conduz à demarcação excessiva de campos diagnósticos, bem como às possibilidades de se cometer equívocos.


A respeito da técnica da psicanálise, Lacan (1954) retoma a “experiência germinal de Freud” de apreender a singularidade, salientando que é aí que reside o progresso freudiano. Ao questionar o que quer dizer a singularidade de cada caso, Lacan responde indicando ser “o interesse, a essência, o fundamento, a dimensão própria da análise, é a reintegração, pelo sujeito, da sua história até os últimos limites sensíveis” (Lacan, 1954, p. 21). A história de cada um é o passado narrado no presente, dando a indicação de que é preciso que o sujeito se aproprie de sua narrativa menos pela perspectiva da rememoração do vivido (exatamente como foi) e, mais pela via da reconstrução de sua história e da maneira como o sintoma se inscreve em sua biografia.


Assim sendo, um diagnóstico exclusivamente relacionado às categorias clínicas propostas por um manual como o DSM comporta consequências sérias para os sujeitos. Do ponto de vista clínico é cada vez mais comum um sujeito preterir uma escuta mais cuidadosa e a narrativa multifacetada que ele próprio poderia ter em relação à sua história e ao que se passa consigo, no nível do sofrimento psíquico, e tender a se apresentar por meio exclusivamente de um quadro diagnóstico, assumindo, pois, esta nomeação para si (Gonçalves, 2022). Trata-se aqui de uma espécie de procuração, de um se fazer apresentar por meio de uma nomenclatura enrijecida, totalmente incondizente com a diretriz da clínica psicanalítica pautada na escutada singularidade, reescrita pelo sujeito na peculiaridade do desejo.


Devemos ter em mente que o problema orgânico, qualquer que seja sua etiologia é uma realidade que se impõe na cena analítica não excluindo as realidades psíquicas(neuróticas, psicóticas e perversas). Uma doença somática ou uma lesão que afeta um órgão é uma realidade que não destitui a singularidade que ostenta para cada sujeito: cada paciente a vivencia de modo sempre particular. Por isso, o cuidado com a hipótese diagnóstica e a condução do tratamento deve ser constante na prática analítica. Nos casos de sintomas somáticos, esse cuidado deve ser ainda maior evitando que o analista ocupe o lugar daquele que vai destituir a doença de sua condição orgânica revelando sua causa psíquica.


É importante que o analista mantenha uma escuta decorrente de sua atenção flutuante a fim de construir um discurso psicanalítico, e não psicológico, no qual o paciente possa se apropriar de um saber sobre seu sintoma. Agindo deste modo, instaurando uma via simbólica na qual o sujeito possa se apropriar acerca do que se passa em seu corpo, podemos evitar que o paciente associe sua doença com seu modo de ser, reiterando a condição de estar doente. Em outros termos, a escuta analítica por meio de uma intervenção via transferência, pode abrir novas possibilidades de subjetivação àqueles sujeitos que se identificam com um diagnóstico e/ou com uma determinada doença.


Referências


Álvarez, J. M., Esteban, R. , Savagnat, F. (2009). Fundamentos de psicopatologia psicoanalítica. Madri: Sintesis.

Bercherie, Paul. (1989). Os fundamentos da clínica; história e estrutura do saber psiquiátrico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Dalgalarrondo, P. (2008). Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 2ed. Porto Alegre: Artmed.

Figueiredo, Ana Cristina, Machado, Ondina Maria Rodrigues. (2000). O diagnóstico em psicanálise: do fenômeno à estrutura. Revista Ágora. V. 3, p. 65-86, 2000. Recuperado em 30/07/2018 em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982000000200004

Freud, S. (1916-1917). O sentido dos sintomas - Conferência XVII. In.: ______ Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (Parte III). Rio de Janeiro: Imago, 1980. (Edição standard brasileira das obras psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XVI).

Freud, S. Sobre o início do tratamento (1913). In.: ______ O caso de Schreber, Artigos sobre técnica e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1980. (Edição standard brasileira das obras psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XII).

Foucault, M. (1977). O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

Gonçalves, Gesianni Amaral. Corpo e clínica psicanalítica: teoria e prática. Curitiba: Juruá, 2022.

Lacan, J. (1986). O seminário livro 1: os escritos técnicos de Freud (1954). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Lacan, J. (1981).O Seminário: Livro 3: As psicoses (1955-1956). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Lacan, J. (1966). La place de la psychanalyse dans la médecine. Conférence et débat du Collège de Médecine à La Salpetrière. Cahiers du Collège de Médecine 1966, p. 761-774. Disponível em: http://www.valas.fr/IMG/pdf/lacan_la_place_de_la_psychanalyse_dans_la_medecine_1966-02-16.pdf

Pinto, J. M.(2008). Política da psicanálise: clínica e pesquisa. In: Psicanálise, feminino, singular. Belo Horizonte: Autêntica.


 

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Sobre a autora: Gesiane Gonçalves é psicanalista e pós-doutora em Processos de Subjetivação na linha de pesquisa Processos Psicossociais pela PUC Minas. Doutora em Estudos Psicanalíticos, na linha de pesquisa Conceitos Fundamentais em Psicanálise e Investigações no Campo Clínico e Cultural pela UFMG. Mestre em Psicologia pela PUC Minas. Especialista em Arte e Educação. Professora das especializações do Instituto ESPE e autora de livros como: Corpo e clínica psicanalítica: teoria e prática e Psicanálise e psicopatologia: olhares contemporâneos.




Revisão e publicação realizada pela psicanalista e pesquisadora Karine de Medeiros Ribeiro. Mestra e doutora em Linguística pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL-Unicamp). Pós-doutoranda na na mesma instituição. Integra os grupos de pesquisa PsiPoliS (Psicanálise, Política, Significante), MulherDis (Mulheres em Discurso) e Colhibri.


 

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