Texto escrito por Tiago Ravanello, Psicanalista e pesquisador. Doutor e Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Assim como ocorre com a psicologia, a psicanálise não se constitui como uma unidade, integrando conceitos e modelos de práticas e procedimentos. Até mesmo a leitura e interpretação do texto freudiano adquire características absolutamente diferentes dependendo das matrizes epistemológicas que regem os projetos de autores que convencionamos chamar de pós-freudianos. Logo, o campo lacaniano opta por chaves de leitura estruturalistas para a compreensão dos conceitos fundamentais da obra freudiana, ao passo que leitores de Winnicott abordam os mesmos textos a partir de concepções empiristas, enquanto que kleinianos compreendem os processos psíquicos através de teses naturalistas. Se chamamos o conjunto dessas dispersões de “a” psicanálise, assim como chamamos o sobrevoo pela psicologia enquanto disciplina de “a” psicologia, a terminologia da unidade esconde diferenças cruciais se vistas pelos pontos de vista da técnica, da ética, da epistemologia e da metodologia. Mas, mesmo apesar de suas diferenças, há algo fundamental para que possamos nomear uma abordagem como psicanalítica: ela deve partir de uma concepção de inconsciente. Certamente, esta concepção não precisa ser unívoca, existe margem para discordâncias e divergências significativas, mas para que possamos abordar a concepção de inconsciente, acredito que um bom ponto de partida seja justamente apontar o nó que enlaça diferentes abordagens em torno dos fundamentos do conceito.
O primeiro deles é a sua pertinência
Não se trata apenas de uma exigência de nomeação e reconhecimento num campo disciplinar, como uma regra que determina o conceito de inconsciente como um pré-requisito para a entrada (seja do profissional, seja de um texto ou releitura). O inconsciente é tratado desde Freud e em diferentes correntes teóricas da psicanálise como uma operação legítima e necessária. Importante frisar que o procedimento que Freud nomeou como justificativa do inconsciente não buscou responder ao que costuma ser a principal crítica à psicanálise – a da existência do inconsciente –, mas sim, indicar os fundamentos da operação lógica que impõe a concepção de inconsciente em determinado modelo clínico. A questão que nos é costumeiramente endereçada por críticos ingênuos, seja como uma pergunta (“o inconsciente existe?”), seja como um ordenamento em tom ameaçador (“então prove a existência do inconsciente”) é, sobretudo, uma questão mal colocada. O inconsciente não existe no sentido daquilo que o epistemólogo Ian Hacking nomeia como um “realismo de entidades”, ou seja, uma existência de materialidade observável e redutível à prova dos sentidos (o que se pode tocar, ver, cheirar e etc). Por outro lado, uma enormidade de fenômenos humanos também não existem nesse mesmo sentido e, nem por isso, deixam de ser matéria de diferentes ciências e saberes. Caso mais relevante nesse contexto é a matéria da qual Lacan irá se aproximar com o interesse de um pesquisador dedicado: a linguagem. Caberia ainda outros exemplos, como a vida enquanto objeto da biologia, as forças enquanto objeto da física ou mesmo a concepção de comportamento, para determinadas psicologias. A abstração de um objeto não é motivo para o descrédito de um campo do saber, posto que o que está em jogo não é a facilidade com a qual nos deparamos com seus objetos, mas a lógica da racionalidade com a qual os delimitamos ou, ainda, os efeitos produzidos a partir de sua colocação em questão. Dito de outra forma, o inconsciente não é um ser e, portanto, não pode ser delimitado em termos de uma ontologia positiva. O inconsciente é uma operação de negatividade incluída em nosso modo de funcionamento, logo, sua abordagem se dá através de uma ontologia negativa que deriva, inicialmente, de seu próprio nome: um não-sabido (ou, como diria Lacan, algo da ordem do não-realizado).
Para tanto, Freud nos coloca excelentes argumentos: o primeiro deles é a nossa descontinuidade entre diferentes âmbitos da realidade
Para o humano, não há condições de uma linearidade entre os fenômenos físicos e os psíquicos. O que significa que nossas ideias, pensamentos, ações, sentimentos e afetos não podem ser explicados através da redução desses fenômenos a bases orgânicas ou naturais. Se temos uma modificação da norma de funcionamento orgânico, seja pelo excesso de produção de uma determinada substância ou por sua falta ou déficit, não deriva diretamente daí uma ação específica, mas sim, uma exigência de trabalho. Freud definiu esse processo fundamental com o conceito, igualmente abstrato, de pulsão (uma exigência de trabalho feita à mente por sua vinculação com o corpo). Isso responde, em parte, à riqueza da variabilidade absurda de respostas da vida humana frente aos mistérios de nossos corpos, variação que permite por exemplo que o aumento da adrenalina seja sentida como prazer em determinadas situações e como medo, em outras. Se não há continuidade, ou, como diria Freud, um paralelismo psicofísico, essa ruptura ou falta de um saber natural e normalizante pré-determinado para as experiências humanas impõe uma concepção negativa de relação com o corpo próprio, com o outro e com a realidade (caso o leitor tenha reconhecido, esse desamparo radical é lido pela teoria freudiana como as principais fontes de mal-estar em nossas vidas). A descontinuidade entre o funcionamento cerebral e o psiquismo é a forma através da qual Freud introduz ao mesmo tempo uma dimensão de não-saber e uma condição de determinação impossível de ser reduzida aos circuitos neuronais.
O segundo argumento de Freud é justamente uma indagação a respeito do que devemos supor que habite essa ruptura
Se há processos psíquicos que podem ser esquecidos e posteriormente relembrados, seria legítimo questionar quais as formas de registro da memória e do pensamento que possibilitariam tal retomada. Assim, Freud encaminha um saber sobre o inconsciente através das lacunas da consciência. Posto que o pensamento consciente tem um limite muito mais curto do que a nossa memória e nossa fantasia são capazes de produzir, teríamos que perguntar sobre como pensar tais lacunas do pensamento consciente. A primeira opção seria negá-las, mas os dados se impõem facilmente, sobretudo nas experiências clínicas. A segunda opção, segundo Freud, seria supor alguma forma orgânica de registro do pensamento, equiparando funcionamento cerebral com a atividade psíquica. Esse parece ser o caminho de diversas abordagens em psicologia e neurociências, sendo que até mesmo Freud buscou operar por essas vias num texto de 1895 chamado Projeto para uma psicologia científica, diga-se de passagem, texto abandonado pelo próprio autor e recuperado e publicado post-mortem em 1950. Por mais que autores contemporâneos do campo das neurociências busquem nesse texto uma tentativa de ligação que tornaria a psicanálise uma espécie de introdução às neurociências, a concepção freudiana de inconsciente vai muito além e lida com problemas postos pela experiência clínica que colocam as questões clínicas não apenas como registros ou traços de memória, mas localizam a origem de sintomas psíquicos também em atos criativos, em raciocínios que implicam na articulação entre subjetividade, fantasia e em astúcias da linguagem. Assim, o inconsciente freudiano seria uma terceira opção: a de supor que as lacunas da consciência são ocupadas nem por matérias orgânicas, nem por outra consciência, mas por um modo de funcionamento psíquico outro. O inconsciente seria uma espécie de racionalidade impossível de ser plenamente traduzida para o raciocínio consciente, mas capaz de se mostrar em determinados tipos de formações, tais como os sonhos, os sintomas, os chistes e os atos-falhos.
Notemos pelo destaque dado por Lacan a essas quatro formações do inconsciente desde Freud que elas apontam para três condições fundamentais para o entendimento da concepção de inconsciente: o caráter de divisão do sujeito, a proposição de uma teoria do descentramento subjetivo, e o determinismo psíquico enquanto prerrogativa dos processos clínicos e explicativos em psicanálise. Por diversas vezes na obra, citando como exemplos A interpretação dos sonhos (1900), Cinco lições de psicanálise (1909) e o artigo metapsicológico sobre o Recalque (1915), Freud irá definir o recalque como a pedra angular da teoria psicanalítica. O motivo por trás de tal condição a qual o conceito é elevado se dá justamente por ser ele a baliza de uma teoria da divisão do psiquismo. É através dos mecanismos de defesa, em especial o “não querer saber de nada disso no sentido do recalque” e os efeitos da resistência que aumentam com a aproximação na cadeia associativa das ideias próximas à representação recalcada que irão alçar a teoria freudiana a uma proposição a respeito de nossa condição de sujeitos divididos. A topografia psíquica é menos importante se tomada como uma cartografia dos lugares, mas ela é imprescindível se pensada corretamente como uma lógica da disposição de diferentes âmbitos de racionalidades em conflito, motivo pelo qual Freud tende a pensar a topografia psíquica como menos importante que sua dinâmica e ainda menos do que sua economia de foças conflitantes. Nesse contexto, toda e qualquer aspiração a holismos ou integralismos do ser são abertamente contraditórios em relação ao projeto freudiano, que prima não somente pelo caráter divisão, mas também por sua dimensão inerente de conflito.
Se há divisão, estamos falando também de âmbitos diferentes do aparelho psíquico
Numa primeira partição (ou tópica, relembrando que aqui os “lugares” não são mais do que uma metáfora para a divisão), teríamos como elementos o Inconsciente, o Pré-Consciente e a Consciência. Numa segunda divisão (ou segunda tópica) que vem a se sobrepor a essa, temos o Isso, o Ego e o Superego. Podemos concluir que Freud alarga e aprofunda os termos da divisão do aparelho psíquico, mas também, das possibilidades de escuta dos conflitos próprios ao psiquismo. Para a psicanálise desde Freud, não há um princípio ordenador no sentido de restaurar a ordem e a harmonia interior visando o desenvolvimento ou aprimoramento do ser, mas justo o contrário: a tônica regente desse aparelho será uma concepção de conflito psíquico. E é justamente aí que o inconsciente freudiano se faz ainda mais relevante, pois a consequência epistemológica da proposição freudiana tem efeitos clínicos extremamente interessantes, já que Freud irá supor que além de dividido, esse aparelho também é descentrado por relação à consciência. Caberia ao inconsciente uma maior amplitude de cadeias associativas, uma disseminação muito mais abrangente de complexos proliferando no escuro e da circulação de desejos. “O eu não é senhor em sua morada” seria uma bela tradução freudiana para o corte aberto no narcisismo da humanidade em sua aspiração de auto-controle pela via da consciência.
Temos, portanto, a partir do inconsciente freudiano uma teoria da divisão psíquica e do descentramento em nossas tomadas de atitudes. Mesmo quando tomamos decisões conscientemente bem pensadas, trata-se de um jogo de cartas marcadas, postas e embaralhadas por um crupiê que trabalha escondido na sala ao lado. Somente através dessa lógica que se tornou possível a proposição de uma teoria verdadeiramente psíquica para a compreensão de sintomas igualmente psíquicos. É assim que a psicanálise interroga sintomas como a depressão, a ansiedade, as compulsões, fobias e conversões enquanto relativas a uma dimensão de conflito psíquico entendidas como psiquicamente determinadas, mas não conscientemente. A própria concepção de sintoma implica em pensa-los como efeitos secundários de uma causa não-aparente, e não como fenômenos arbitrários ou acidentais. Um sintoma é um efeito subjetivo de uma causalidade aparentemente indeterminada, cabendo ao clínico a investigação das linhas constitutivas que traçam a determinação inicialmente não observada. Isso em nada corresponde à prática da adaptação a normas e convenções sociais, posto que a psicanálise em suas diferentes roupagens não se destina ao exercício da normatividade social.
Ao invés da medicalização ou da modelação de comportamentos indesejáveis de acordo com normas muito pouco questionadas (e por vezes o discurso da normalidade esconde formas de adaptação a ideais que veiculam diferentes formas de violência e opressão ou, ainda, de um processo de colonização dos padrões americanos de conduta), a psicanálise põe em questão as linhas associativas que determinaram a construção de um sintoma específico. Resgatar a historicidade de uma forma de sofrimento psíquico é também dar voz e lugar às questões que movem um sujeito. Se esse sujeito descentrado e indeterminado do inconsciente é sentido como um outro em nós mesmos, faz-se necessário que ele tenha condições de presentificar a dimensão de verdade que ele comporta. Assim entendido, a psicanálise torna-se uma ética justamente por reposicionar os termos do conflito entre nosso desejo inconsciente e nossas aspirações éticas, estéticas e morais, visando uma condição de vir-a-ser sujeito naquilo que nos move como verdade. Estranhamente, essa é uma tradução muito importante do processo analítico que costumamos ouvir de analisandos e analisandas quando se referem aos efeitos de uma análise: “agora eu sinto que eu estou presente em minha própria vida”. Não se trata da eliminação da condição de descentramento, mas de um reposicionamento que permite habitar também o Outro que reside em nós mesmos.
Por fim, importante destacar um modo peculiar de exposição do conceito que Freud nos brinda no artigo metapsicológico sobre O Inconsciente (1915)
Nele, o autor nos convida a uma experiência de pensamento que parte da seguinte questão: conseguimos sentir a consciência do outro ou apenas a supomos? E nossa suposição é tão mais forte quanto mais nos identificamos com o comportamento ou com as ações do outro. Se inicialmente estamos dispostos a fazer a mesma suposição a objetos inanimados, animais ou plantas, progressivamente vamos restringindo tal raciocínio a seres humanos. Pois bem, se essa hipótese é justa em função do reconhecimento da racionalidade por detrás de seus atos, o mesmo deveria se estender à condição da subjetividade que produz fenômenos para além de nossa consciência. Nossas lacunas então seriam habitadas por um outro, desde que, segundo a ressalva freudiana, possamos entender que não se trata de uma segunda consciência replicada (ou uma sub-consciência), mas de uma forma de pensamento radicalmente diferente. Eis que surge então uma concepção de inconsciente, como diria Lacan, como discurso do Outro, ou ainda, como uma teoria da diferença radical. O efeito disso na teoria e clínica tal como pensada por Lacan será reposicionar a topografia em torno de um percurso gerativo desse sujeito em sua relação com o desejo enquanto efeito de um processo de alienação fundamental e a clínica como uma nova teoria do reconhecimento.
O inconsciente na versão lacaniana toma ares de uma nova teoria do sujeito (seguindo a distinção proposta originalmente em francês, o Je), cabendo a ela uma diferença fundamental em relação ao ego (ainda na língua original, o Moi). Essa teorização duplica ainda o regime da alteridade entre o “outro” das relações imaginárias e o “Outro” enquanto tesouro dos significantes. Enfim, temos aqui muitos horizontes a seguir em novas publicações para esse blog, já que “o inconsciente lacaniano” seria um capítulo à parte.
Sobre Tiago Ravanello: Psicanalista e pesquisador. Doutor e Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo parte de seu doutorado sido realizada como bolsista do Centre de Sciences du Langage da Université de Paris - X - Nanterre pelo programa CAPES/PDEE. Realizou seu pós-doutorado em Psicologia/Psicanálise na Universidade de São Paulo (USP).
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