O Inconsciente na Psicanálise: Estrutura, Linguagem e Sujeito
- Instituto ESPE
- 23 de jun.
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Texto escrito por Renata Wirthmann.

“O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica” (Freud, 1900) A noção de inconsciente, tal como concebida por Freud e retomada por Lacan, representa um dos pilares fundamentais da teoria psicanalítica. Desde sua formulação inicial, o inconsciente não se confunde com uma instância obscura ou metafísica do psiquismo, mas se configura como um sistema dotado de estrutura própria, formado por conteúdos recalcados que podem, ou não, retornar à consciência. Esta divisão entre conteúdos inconscientes que podem ou não retornar à consciência é explicada por Freud em seu ensaio O inconsciente, de 1915, no qual esclarece que o inconsciente é, simultaneamente, descritivo e sistemático. O primeiro aspecto refere-se às representações mais latentes do psiquismo, ou seja, conteúdos que, embora inconscientes, podem se tornar conscientes. Já o segundo, sistemático, trata-se do inconsciente propriamente dito, pois abriga as representações recalcadas e impedidas de alcançar a consciência devido à ação mais contundente da censura. Essa distinção entre o inconsciente sistemático e o descritivo nos permite compreender que o inconsciente não se resume a um depósito de conteúdos inacessíveis, mas que, na verdade, opera de acordo com uma lógica específica, em articulação com a linguagem. Rigoroso à proposta freudiana, Lacan vincula o conceito de inconsciente à linguagem afirmando que a linguagem é a estrutura própria do inconsciente, que lhe fornece sua lógica específica. Essa junção é sintetizada por Lacan em sua famosa elaboração - o inconsciente é estruturado como linguagem. Em O seminário, livro 7: A ética da psicanálise (1959-1960), o psicanalista francês decreta que: “O que é conhecido não pode ser conhecido senão em palavras, posto que o que é desconhecido apresenta-se como sendo uma estrutura de linguagem”. A concepção de inconsciente da psicanálise encontra eco na literatura. A linguagem do inconsciente não é direta, mas elíptica, equívoca. Em As palavras, Clarice Lispector capta essa dimensão ao escrever: “Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu”. O inconsciente, nesse sentido, manifesta-se na falha, no tropeço da linguagem, naquilo que escapa à cadeia significante. Essa estrutura não é apenas um modo de organização formal, mas a condição para a possibilidade do sujeito. O sujeito, para a psicanálise, não preexiste à linguagem; ele surge como efeito de sua incidência. Lacan aponta, assim, que o sujeito se revela no lugar onde Freud localiza o inconsciente. Para Freud, o inconsciente é o resultado de uma dedução. É o que Lacan traduz do modo mais aproximado, salientando que o sujeito do inconsciente é um sujeito suposto, ou seja, hipotético. “Freud, onde duvida (...), está seguro de que um pensamento está lá, pensamento que é inconsciente, o que quer dizer que se revela como ausente. É a este lugar que ele chama (...) o eu penso pelo qual vai revelar-se o sujeito”, escreve o psicanalista em O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). O psicanalista Jacques-Alain Miller, por sua vez, nos explica, em Sutilezas analíticas, que a escolha de Lacan em demarcar o inconsciente a partir do significante sujeito tem o propósito de enfatizar a questão da falta e do desejo: “Lacan optou por enfatizar o inconsciente como sujeito, um sujeito que não tem substância, que é um tropeço, já que algo não se encaixa, mas se expande para preencher o próprio desejo”. Assim como a linguagem, o sujeito do inconsciente se constitui como efeito significante, ou ainda, como falha e fenda entre significantes. Por isso, mais uma vez, recorro à Clarice: “A linguagem é meu esforço humano. Por destino volto com as mãos vazias. Mas – volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem”. O sujeito do inconsciente é, em sua essência, dividido, descontínuo, não representável de forma plena. Trata-se de um sujeito que emerge como efeito da linguagem, cuja existência é suposta, deduzida a partir dos atos falhos, sintomas, sonhos e demais formações do inconsciente. Para Lacan, o inconsciente se revela como ausência, como um pensamento que está lá, mas que se apresenta como ausente. O sujeito, como ser essencialmente falante (parlêtre) – ser que se sustenta pelo fato de falar –, de significante em significante, corresponde, portanto, à inscrição de uma falta, justamente por se localizar nos intervalos dos significantes. Esse sujeito, marcado pela divisão e pela falta, não é um ente substancial, mas um ponto de descontinuidade. O sujeito do inconsciente não é o indivíduo empírico, mas o efeito de uma fala, ou, ainda, de um significante que o representa para outro significante. É importante constatar que nada podemos saber do inconsciente, e nada podemos saber sobre o sujeito, a não ser por meio das formações do inconsciente que ocorrem, por excelência, através da linguagem. Mas como saber da existência de um pensamento inconsciente? O inconsciente não é diretamente acessível: ele só pode ser conhecido por meio da consciência, a partir de suas formações. É somente por seus efeitos — falhas no discurso, esquecimentos, trocas de palavras, lapsos, chistes, sonhos — que se pode entrever sua presença. Para a psicanálise, as formações do inconsciente são formas de manifestação daquilo que retorna do recalcado. O recalque é o resultado do conflito entre o desejo e a censura. Não sendo possível abrir mão do desejo ou romper com toda censura, o Eu, para manter algo do desejo e se preservar diante da censura, lança tal conteúdo para o inconsciente. O recalque, portanto, funda o inconsciente. Entretanto, é preciso destacar que esses pensamentos recalcados não permanecem inertes: eles se esforçam para retornar, e o fazem de maneira cifrada, endereçada ao Outro. É justamente esse retorno do recalcado que constitui a única prova efetiva da existência do inconsciente. A parte do inconsciente que se recusa a desaparecer encontra modos de reaparecer, ainda que sob a forma de distorções, condensações e deslocamentos, nas formações do inconsciente. É interessante observar que há uma parte do inconsciente que não retorna e, para se manter recalcado, esse conteúdo precisa encontrar uma via de descarga, e essa vazão se realiza precisamente através das formações do inconsciente. Quais são as formas de retorno e sua importância para o sujeito? O sintoma é a mais persistente e duradoura de todas as formações do inconsciente. O ato falho dura um segundo, o sonho dura uma noite, o chiste alguns minutos e o sintoma, quanto dura? O sintoma dura uma vida inteira! Posso interpretar o retorno do recalcado? Sim. O retorno do recalcado é uma mensagem ao Outro, mais especificamente uma mensagem cifrada a ser decifrada, ou seja, interpretada. As formações do inconsciente podem ser interpretadas, mas nunca completamente. Sempre haverá um resto que ultrapassa a significação, algo que permanece inerte, fixo e resistente à interpretação. Mesmo resistentes à interpretação, elas só serão consideradas formações do inconsciente exatamente quando decidimos que elas serão escutadas, pontuadas e interpretadas. As formações do inconsciente são de extremo valor para a psicanálise, justamente porque resistem a qualquer explicação pronta e exigem uma construção em análise. A lógica inconsciente, a ser construída a partir desses restos de sentido que, num processo psicanalítico, produzem enigmas ao sujeito que o levam a construções em análise. Como nos alerta Lacan, em O seminário, livro 5: As formações do inconsciente (1957-1958): “há nisso uma função significante que escapa ao código (…). Aparece algo novo (…) que requer que nos detenhamos em sua formação”. Na clínica psicanalítica, a interpretação desse conteúdo não visa decifrar um conteúdo oculto, mas operar sobre os significantes que se apresentam na fala do sujeito. O inconsciente, como lugar de equívoco, não se esgota no sentido; ele aponta para o que escapa à significação. Por isso, Lacan insiste que a interpretação é ato, e não explicação. O que se interpreta é o dizer, o modo como o sujeito se constitui na linguagem. O inconsciente não é completamente decifrável como um enigma, mas interpretável como uma escrita que deixa sempre um resto. Concluímos, portanto, que o inconsciente, em Freud e Lacan, não é um depósito de conteúdos recalcados, nem um fundo oculto do psiquismo, mas uma estrutura lógica e linguística que funda o sujeito. O sujeito do inconsciente é aquele que fala e que se perde naquilo que diz, que responde — sem saber — ao desejo do Outro. É nesse campo de tropeços, falhas e desvios que se constitui a experiência analítica e a escuta ética da psicanálise.
“O indizível só me poderá ser dado através
do fracasso de minha linguagem”
(Clarice Lispector, 1964)