Texto escrito por Tiago Ravanello, Psicanalista e pesquisador. Doutor e Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O conceito de repetição demarca uma reviravolta extremamente importante do ponto de vista clínico, como uma dessas mudanças de rumo da história que promovem transformações irreversíveis. Pensada por Freud no contexto da clínica dos sintomas neuróticos, mas também da psicopatologia da vida quotidiana e dos sonhos, a repetição passa a se tornar um enigma a demandar a atenção primeiramente como uma característica imanente à experiência psicanalítica, mas também, como uma espécie de índice da falência de um determinado modelo de clínica, que precisará ser reinventado. Remontar essa história é como recontar o processo de construção do método psicanalítico, seus fundamentos e os preceitos de sua ética.
Podemos dizer que em seu nascimento, a experiência clínica de Freud tem uma estrutura muito similar à da clínica médica.
Não à toa em seus Estudos sobre histeria (1893/1996), texto em parceria com Joseph Breuer, Freud irá falar de “psicoterapia da histeria” na parte relativa à discussão da técnica, fazendo a junção do âmbito psíquico (o “psico”) com a concepção terapêutica atinente à ideia de tratamento ou promoção do cuidado (o “therapeia”). Nesse procedimento, a escuta clínica é seguida da descrição das queixas e das características atinentes aos sintomas, que passam então ao agrupamento das similaridades, formando conjuntos de aspectos que endereçam a uma teoria possível das causas. Esse modelo de racionalidade diagnóstica médica embasa, na sequência, a escolha dos modos de tratamento e intervenção. Pois bem, essa distinção entre investigação e tratamento como um fundamento da clínica médica, que demanda primeiro diferentes formas de exploração (exames clínicos, laboratoriais, de imagem, etc) para somente após a definição de uma causalidade iniciar um procedimento que visa o reestabelecimento da saúde ou a produção de uma nova norma de funcionamento está presente no raciocínio freudiano em seu princípio: cessar causa para somente então cessar efeitos. Entretanto, é uma distinção que perderá o seu sentido na medida em que a experiência clínica fizer adentrar novos contornos de complexidade, sobretudo, pela ordem da repetição. Porém, voltando a essa lógica, Freud irá se lançar à investigação das causas dos sintomas histéricos, sobretudo aqueles marcados por fenômenos conversivos (nos quais o corpo se torna o palco da experiência do sofrimento psíquico) através de uma busca investigativa que visava inicialmente a descoberta de um fato, de um acontecimento pensado como a incidência de uma realidade externa sobre o psiquismo. É nesse contexto que surge a concepção de trauma psíquico como uma teoria da causalidade que visava explicar o sintoma como a resposta a uma intrusão nociva do outro, uma intrusão que romperia com expectativas, com processos associativos que “normalizam” a realidade. A resultante desse raciocínio cria a teoria da sedução como causa dos sintomas histéricos e, por consequência, a ab-reação como intervenção clínica possível. Logo, trata-se de um modelo de tratamento que não prevê em si a condição de repetição do sintoma: algum fenômeno intrusivo causa um impacto que não permite a liberação ou descarga do afeto criado no processo, o acúmulo é sentido como sofrimento e o método consistiria em permitir uma resposta ao “afeto estrangulado”, às “emoções enlatadas” (FREUD, 1891/1996, 1893/1996). Manter-se-ia, assim, a separação entre investigação e intervenção, e a efetividade da pesquisa levaria à realização de uma ação conclusiva, motivo pelo qual Freud irá defender em seus textos iniciais o caráter eficaz do método na eliminação definitiva dos sintomas.
Essa concepção de causalidade como intrusão não se sustentará na teoria e clínica psicanalítica. A questão que irá se colocar será justamente a da difícil equação entre realidade e fantasia: para que uma ideia esteja no epicentro da criação de um sintoma, não é necessário que ela tenha ocorrido como fato externo. Para usar a expressão freudiana: as ideias “excessivamente intensas dos neuróticos” começam a delimitar o inconsciente como a “verdadeira realidade psíquica” (FREUD, 1900/1996). A direção do tratamento deixa de ser a busca de uma extração do fato esquecido e passa a se orientar em torno da extração do sentido perdido ou rompido pelo conflito psíquico. Não mais um outro intrusivo ou um ato abusivo como causa fundamental dos sintomas, mas uma experiência de perda de sentido ou significação relativa à própria divisão psíquica. Logo, uma teoria da cisão entre os sistemas, sobretudo a partir de A interpretação dos sonhos (1900/1996), irá se impor como fundamento da racionalidade diagnóstica freudiana. Por resultado, a indiferenciação entre investigação e intervenção irá se impor à clínica freudiana, posto que o método investigativo não será mais a tentativa de extrair a memória perdida, mas de associar ativamente, de defrontar-se com as lacunas da consciência e os conflitos subjacentes a ela. Da extração do fato, caminhamos na direção da extração do sentido.
Note-se que esse é um ponto crucial de distinção entre pós-freudianos a respeito dos rumos da clínica psicanalítica: a concepção de ressignificação e o caráter compulsivo do sintoma. O trabalho analítico encaminhado pela via da ressignificação dos sintomas demanda uma posição ativa dos e das analistas no intuito da proposição de novos meios associativos, da retomada de pontos cruciais para superar uma suposta perda ou déficit de simbolização. Tratar-se-ia, portanto, de uma tarefa interminável, para se dizer o mínimo, seja porque a vida é infiel a ponto de infinitizar as possibilidades de ligação das cadeias associativas, seja porque determinadas situações (como violências, acidentes, tragédias, a nossa finitude e a daqueles que amamos) simplesmente não encontram um limite no sentido. Logo, equiparar a interpretação psicanalítica a uma interpretação hermenêutica seria obliterar algo de fundamental presente em toda entrada em análise: a compulsão à repetição. Esse é um ensinamento muito árduo a jovens analistas, assim como foi um passo longo e momentoso na construção do método psicanalítico: a significação não esgota o sintoma. Freud toca nesse problema ao discutir a questão da análise selvagem (FREUD, 1910/1996) ou ainda no artigo metapsicológico sobre o inconsciente (FREUD, 1915/1996), destacando que quando a tarefa interpretativa se resume a comunicar a um analisando o sentido inconsciente subjacente ao seu ato, o analisando ou analisanda duplica o registro, mantendo o sintoma e a narrativa explicativa sem que elas exerçam entre si uma forma direta de ligação ou levem a uma transformação do caso. Após a comunicação sobre a verdade de seu sintoma, muito provavelmente um analisando ou analisanda irá dizer algo como: “ok, obrigado, mas e agora? O que faço com isso ou de que me adianta saber?” Nesse sentido Freud será categórico por diversas vezes: saber algo e experimentar definitivamente não são a mesma coisa.
Reside aí o caráter diferencial da experiência transferencial e a entrada em cena da concepção freudiana de repetição: numa análise não se trata apenas de rememorar os fatos ou de compreender o sentido oculto de nossas ações, mas de uma experiência transformativa de repetição. No dito freudiano, começamos recordando, passamos a repetir na transferência para então nos depararmos com o trabalho de elaboração. No dito lacaniano, um analisando ou analisanda começaria falando de si, mas não para o analista; em algum momento passaria a endereçar seu dito ao analista, mas sem falar de si mesmo; a análise aconteceria na consecução do ato do dizer endereçado ao analista a partir do qual um analisando fala de si mesmo (LACAN, 1953, função e campo/escritos). Logo, relida por Lacan, a interpretação passa a visar a extração do sujeito e o enfrentamento de uma dimensão ética que implica em vir-a-ser lá onde se era, como um dever devotado à análise e sustentado pelo desejo do analista.
É justamente nesse limite da experiência psicanalítica que, a partir de 1920, Freud irá se debruçar com mais atenção ao problema da repetição. Em Além do princípio de prazer (FREUD, 1920/1996), Freud irá questionar justamente o que faz com que experiências desprazerosas sejam compulsivamente repetidas (como ocorre por exemplo nos sintomas, nos pesadelos repetitivos, nos traumas de guerra e na transferência), contrariando o princípio segundo o qual o aparelho psíquico seria regido pela obtenção do prazer a partir das descargas de afeto, evitando sua retenção. Dito de outra forma, se o aparelho psíquico é regido pela lógica da eliminação das quantidades de afeto visando a obtenção da satisfação e a manutenção num estado de tensão o mais próximo de zero possível (princípio de nirvana), o que faria com que determinados processos altamente desprazerosos se repetissem insistentemente? Essa problemática torna-se incontornável a partir do aumento das tensões sociais vividas na época do entreguerras, mas também, por uma mudança de perspectiva clínica que aumentará o tempo de prolongamento dos tratamentos psicanalíticos. Inicialmente, visando a eliminação do sintoma, os atendimentos eram interrompidos nas primeiras respostas positivas dadas com a efetividade decretada em função da suspensão da queixa inicial. Com o surgimento do tripé como uma exigência formativa, o prolongamento da duração dos atendimentos de Freud irá se impor como uma necessidade institucional, levando-o a testemunhar a falência de um modelo interpretativo relativo à designação dos fatos ou dos sentidos como fator causal dos sintomas. A repetição, portante, se impôs como uma demanda de pesquisa.
Mas esse procedimento tem um início bem marcado, mais especificamente, no segundo seminário de Lacan (1954-1955/1985). Nele, sua estratégia consiste em reler o Projeto para uma psicologia científica (1895/1996), escrito por Freud em 1895, mas publicado em 1950 (quatro anos antes do seminário 2) à luz de Além do Princípio de prazer (FREUD, 1920/1996). A resultante de tal dobra na teoria freudiana, como quem lesse Freud de trás para frente (e talvez esse seja um dos sentidos possíveis de um “retorno a Freud”, pensa-lo como um retorno de Freud ao princípio de sua teorização) tem por consequência derivar do texto uma concepção de rede ou circuito contraditória com as versões essencialistas do eu. Logo, a crítica lacaniana de uma psicanálise que lhe era contemporânea e que apostou no fortalecimento egóico através da ressignificação do empréstimo de partes sadias do eu do analista tem por resultante a introdução de uma nova teoria do sujeito em sua relação com a linguagem. Não mais um ego sede dos mecanismos de defesa, gestor das relações internas e externas e senhor do teste de realidade, mas um sujeito preso e torturado nos circuitos compostos pela cadeia associativa. Lacan chega a essa concepção trágica do simbólico ao reposicionar a concepção de compulsão à repetição a partir da lógica dos trilhamentos, dos processos de ligação e do impacto avassalador do discurso do Outro. Assim nos aponta Lacan que “se a função simbólica funciona, estamos dentro. E digo mais – estamos de tal maneira dentro que não podemos sair.” (LACAN, 1954-1955, p. 46). Parafraseando o poeta Mário Quintana, se é verdade que a liberdade é um sonho que alma humana alimenta, segundo a letra lacaniana tal sonho seria alimentado pelo reconhecimento de que nossa condição humana subdita à compulsão à repetição nos torna menos livres do que as máquinas, porém, desejantes.
Referências Bibliográficas
(FREUD, 1891/1996, 1893/1996)
(1900/1996)
(FREUD, 1910/1996)
(FREUD, 1915/1996)
(LACAN, 1953, função e campo/escritos)
Sobre Tiago Ravanello: Psicanalista e pesquisador. Doutor e Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo parte de seu doutorado sido realizada como bolsista do Centre de Sciences du Langage da Université de Paris - X - Nanterre pelo programa CAPES/PDEE. Realizou seu pós-doutorado em Psicologia/Psicanálise na Universidade de São Paulo (USP).
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