Texto escrito por Tiago Ravanello, Psicanalista e pesquisador. Doutor e Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O estatuto epistemológico da psicanálise – ou seja, o seu lugar de direito dentro ou fora do rol das ciências – é uma questão posta e repleta de controvérsias desde as primeiras publicações de Freud que requisitaram a nomeação de um novo campo do saber. A intenção de seu principal autor é indubitável, ou, como diria o próprio: “se a psicanálise não for uma ciência, que outra coisa poderia ser?” E ainda mais, Freud estava convencido da psicanálise se tratar não de uma ciência do espírito, mas de uma ciência da natureza. Segundo sua forma de compreensão, enquanto as ciências do espírito se dedicariam a compreender os fenômenos psíquicos e ordená-los em diferentes categorias do saber, caberia às ciências da natureza a explicação sobre os objetos, a delimitação de diferentes modos de causalidade e, por consequência, o direito a um âmbito de transformação sobre a realidade abordada. A concepção freudiana de clínica, nesse sentido, seria diretamente derivada da capacidade de sua teoria prover explicações sobre a causalidade dos sintomas e, por consequência, os resultados de sua clínica seriam as provas da eficácia de seu método e do acerto sobre o seu caráter de cientificidade. A experiência clínica, assim entendida, seria o laboratório ou o experimento da teoria psicanalítica e a escrita e discussão dos casos clínicos constituiriam uma teoria da prova sobre o método.
Entretanto, vários fatores levaram a comunidade científica de sua época e a opinião comum a levantarem dúvidas quanto aos argumentos freudianos.
Diga-se de passagem, algumas dessas críticas são razoáveis e mereceram respostas mais cuidadosas ao longo da história do movimento psicanalítico. Contudo, uma parte considerável do universo de críticas esconde interesses escusos, disputas de campo de atuação e de público de formação, e, mesmo, posições morais que visavam abafar elementos postos em discussão desde a teoria freudiana, tais como a sexualidade infantil e a feminina, liberdade e autonomia e a responsabilidade ética sobre o campo das paixões. Para o exame que agora nos propomos, vamos discutir brevemente cinco pontos levantados a partir de um universo de críticas e questionamentos que levariam a supor a psicanálise como uma pseudociência (ou como uma teoria que se propõe científica, porém, que não teria alcançado os critérios para tal):
1) A constituição de um objeto como expurgo: a delimitação de um campo de saber e atuação depende diretamente da delimitação de seu objeto.
De uma forma clássica, nomeamos esses campos pela soma de um radical greco-latino designando um objeto somado ao sufixo logia em referência a logos, o saber ou conhecimento resultante da abordagem própria ao campo. Assim procedemos com a biologia, psicologia, fisiologia, etc... Mas apenas nomear não é o suficiente para garantir que o objeto seja digno de uma abordagem científica, que os métodos utilizados sejam suficientes para a correção de seus procedimentos ou, por fim, que os resultados da aplicação do método estejam à altura da demanda de sua explicação. Saberes como os da astrologia, numerologia, iridologia, dentre outras, parecem carregar consigo uma forte tendência ao consenso de diferentes áreas da comunidade científica a respeito de sua não-cientificidade, apesar do anseio ou convicções de seus praticantes. E convenhamos, nem todos os campos do saber precisam ser tidos como ciência para terem um lugar em nossa contemporaneidade. Talvez o caso mais notório disso seja o das artes médicas, que embora bebam de fontes de pesquisas científicas, necessitam de uma artesania que inclui a casuística, as decisões particulares e modelos de coleta de dados que não necessariamente se enquadram nos modelos de ciência mainstream. Mas nada disso depõe contra a necessidade ou importância de tais saberes. O exercício clínico da medicina não coincide com a prática da pesquisa científica, sem que isso deponha em nada contra a seriedade ou eficácia de seus métodos, que podem, inclusive, serem submetidos à pesquisa.
A questão é que, no caso da psicanálise, a constituição de seu objeto se dá através de um conjunto de expurgos. O campo psicanalítico é constituído, desde seus primórdios, por uma série de objetos que são descartados por outras ciências. Isso ocorre tanto em termos de suas demandas (os corpos em sofrimento que não tiveram causalidade localizada por outros saberes, crianças que não se submeteram aos modelos de ensino ou às exigências sociais de um desenvolvimento padrão, enfim, as formas de vida que não se encaixaram nas expectativas e fantasias de uma suposta normalidade) quanto de sua principal premissa: o inconsciente como sobredeterminação em relação à consciência. Os sonhos, os desejos, as fantasias, os pensamentos não assumidos pela consciência ou tudo aquilo em nosso ser que não corresponde às nossas identificações e representações sociais que regem nossos aspectos éticos, estéticos e morais mais elevados encontram no inconsciente freudiano o seu lugar de descarte. Uma ciência que se destina ao estudo do aterro da subjetividade de um determinado tempo, à arqueologia do que é negado e censurado não poderia visar ser bem aceita por aqueles que sustentam os critérios e as condições da normatividade. Foi assim que Freud respondeu a maioria de seus críticos mais tenazes: a psicanálise desperta resistência ao sustentar a dignidade da escuta de tudo o que uma sociedade puritana optou por esquecer, por defender um iluminismo obscuro que traçou linhas de racionalidade para além do orgulho de nossa consciência e que questionou fundamentalmente os limites de nossa fantasia de autonomia.
2) Falta de discussão de Freud sobre a ciência e o(s) método(s) científico(s):
a sequência da discussão nos leva a colocar um ponto de interrogação justamente sobre o modo defensivo em relação ao qual Freud respondeu aos seus críticos. Como bem coloca Waldir Beividas em seu livro Inconsciente et verbum (2002), Freud não avançou suficientemente na discussão a respeito do fazer ciência ou dos critérios de sua constituição. Ao tomar “ciência” como um sinônimo de “ciência da natureza”, Freud resume o encaminhamento da prática como um artifício de sua resolução ou poder explicativo. Ao invés de uma proposição mais minuciosa sobre qual o modelo de ciência que a psicanálise estaria se vinculando ou criando, o mestre vienense dá como letra morta a necessidade dessa discussão (como se não lhe dissesse respeito esse debate aparentemente filosófico) e relega a outros campos a legitimidade desse debate. Ciência, no texto freudiano, torna-se portanto um conjunto articulado de adjetivos relativos à seriedade, efetividade, ética, coerência e, sobretudo, rigor no pensamento e na atuação. Dito de outra forma, sua preocupação mais urgente se destinava ao controle na formação de novos analistas e no modo de exercício da prática, articulando método e técnica, teoria e clínica, metapsicologia e escuta analítica. O mesmo não pode ser dito de Lacan, que alçou a discussão sobre a cientificidade de sua versão da psicanálise a outro patamar.
3) Encruzilhada de matrizes epistemológicas: um ponto de destaque na discussão sobre a cientificidade da psicanálise tem a ver com uma característica no estilo da produção teórica freudiana.
A saber, sua multiplicidade de formas de raciocínio e diversidade de modelos de referência. Enquanto a maioria das abordagens no campo psi tem uma matriz epistemológica bem definida e uma submissão notória a uma forma de raciocínio, o estudo mais sistemático da obra freudiana mostra como característica fundamental uma variedade notória de referenciais teóricos e filosóficos bem como de modos de abordagem que contribuem diretamente à construção de uma espécie de mosaico de micro-teorias que se articula num método multifacetado de escuta e intervenção. Podemos dizer que Freud bebeu em muitas fontes: romantismo alemão, psicofísica, positivismo lógico, realismo, idealismo, tragédia grega, associassionismo inglês, representacionismo dentre outros. Também seria lícito elencar uma série de modelos, práticas e movimentos de pensamento que tiveram na teoria freudiana uma influência marcante: estruturalismo, pós-estruturalismo, surrealismo, existencialismo, humanismo e, pasmem, até mesmo o cognitivismo.
Mas sejamos categóricos nesse ponto: a cientificidade não deve ser avaliada pela capacidade de um campo de se manter fiel a um modelo epistemológico, assim como a diversidade de fontes não deve ser pensada como demérito. A questão corretamente colocada deve se ater à coerência de um método e o alcance de suas proposições. E é justamente nesse ponto que a imensa maioria dos críticos à psicanálise fracassam miseravelmente em suas colocações, posto que não reconhecem as variações de métodos que constituem diferentes psicanálises, e não um campo unitário. O que podemos chamar de “método psicanalítico” não corresponde “à” psicanálise, mas deve ser entendido dentro de universos teóricos recortados em sua especificidade. Há um mar separando a teoria lacaniana e as psicanálises de Melanie Klein e Donald Winnicott, apenas para citar casos mais notórios. Estruturalismo, naturalismo e empirismo são as tônicas de três psicanálises constituídas a partir da diversidade freudiana, sem que nenhuma das três sejam equivocadas em relação ao texto freudiano e, ainda assim, sejam contraditórias entre si. Logo, qualquer discussão que venha a decretar cientificidade ou não da psicanálise considerando-a um campo unitário comete um equívoco de partida que coloca em suspenso a seriedade de seu procedimento.
4) Não adesão a modelos pré-determinados de cientificidade:
Falando em erros comuns na avaliação do estatuto epistemológico da psicanálise, não podemos deixar de colocar em relevo a escolha dos critérios ou do modelo de ciência a se tomar como parâmetro. Historicamente, o espectro de teorias que poderíamos chamar de “ciências do comportamento”, incluindo aí comportamentalismo, análise do comportamento aplicada e cognitivismo (e respeitando suas diferenças constitutivas) tem se dedicado a ataques mais ou menos bélicos à cientificidade da psicanálise. Seja pela crítica de seus conceitos, seja pela reafirmação de sua superioridade (como mais científicas ou como “padrão ouro” de tratamento), tais campos do saber partem em suas colocações de uma questão de base que é, para dizer o mínimo, extremamente rasa: a adesão positivista ao raciocínio de defesa de um modelo único de ciência. Reduzindo método à observação e técnica à experimentação, tais abordagens há décadas decretam o fim da psicanálise ao (re)descobrirem constantemente o óbvio: a psicanálise não fundamenta suas teses na observação, e sim num método de escuta, e não replica suas hipóteses em práticas experimentais, mas tem na experiência clínica o locus da avaliação de suas teses. Logo, estão corretos em afirmar que as diferentes psicanálises não correspondem ao modelo de ciência empregado nas chamadas “ciências duras”. O que esquecem de dizer, e vejamos nisso o efeito de uma cortina de fumaça, é que nem eles o fazem. Aliás, tal raciocínio – raso como um pires – não se sustenta por mais de 5 minutos numa conversa séria entre práticas de pesquisa. Os experimentos com aceleradores de partículas na física, o sequenciamento de genomas na biologia, a descrição exaustiva de formas de vida na botânica constituem especificidades metodológicas que, se replicadas de forma irrefletida em outros campos, gerariam absurdos lógicos. Sinto informar aos nossos amigos e amigas das abordagens classicamente americanas da psicologia que suas formas de fazer ciência, infelizmente, não são as mesmas nem mesmo entre si, quiçá quando comparadas a outras áreas de saber. Para além disso, o fundamento positivista da exclusão da metafísica como garantia da cientificidade é uma quimera inalcançável. Para justificar isso, basta lembrar que a concepção de “conceito” é em si mesma uma asserção metafísica. Desse ponto de vista, não é apenas o conceito de inconsciente que teria uma falta de lastro observacional para poder ser considerado na discussão científica, posto que o próprio conceito de “comportamento” padeceria do mesmo mal, não é mesmo?
5) Disputas políticas de campo, clientela e de formação:
Não obstante a esse problema, faz-se notar que as discussões sobre a cientificidade da psicanálise tem muito menos palco no regime ao qual deveria efetivamente ocorrer, ou seja, no âmbito de publicações científicas. Essas discussões tendem a ocorrer nas salas de aula das universidades (especialmente nos cursos de graduação e pós-graduação em psicologia), nos eventos promovidos por cursos ou entidades de grupos (nas quais se reafirmam identidades e posições quanto ao problema), em publicações destinadas ao grande público (nas quais se confundem “popularização da ciência” com formação de interesse em abordagens específicas) e, mais recentemente, no universo das redes sociais (onde jogar para a torcida, conquistar público e reafirmar identificações através de poucos segundos ou caracteres rebaixa a seriedade da discussão ao efeito performático da “lacração”).
Destaco o modo como os ataques à cientificidade da psicanálise
Sobretudo quando partem de professores e professoras no exercício das formações de psicólogos e psicólogas tem por fundamento uma disputa territorial e cumprem uma função imperialista: a disputa palmo a palmo por espaço define do ponto de vista pragmático o direito à continuidade e perpetuação do campo. Isso não ocorre necessariamente no âmbito do embate de ideias, mas naquilo que Thomas Kuhn chamava de sociologia da comunidade científica. E nisso o poder de persuasão faz elevar o tom das denúncias, criando efeitos de veridicidade sem compromisso com a realidade. Tudo bem dizer que psicanálise não tem eficácia comprovada, sem mencionar que o estudo de maior amplitude sobre o tema (de Leichsenring e Rabung, 2008) indica a psicanálise como mais efetiva, sobretudo em casos mais graves e sem a adjuvância de intervenções medicamentosas. Nenhum problema em afirmar que a psicanálise se destina exclusivamente ao tratamento das altas classes burguesas, sem precisar ver que ela é justamente a abordagem mais utilizada nos serviços públicos de saúde e pioneira na formação de coletivos destinados a grupos periféricos e dispositivos de atendimentos nas ruas e nas praças. E por que não afirmar que não há argumentos justificáveis para a legitimidade da cientificidade da psicanálise sem sequer ler uma vasta gama de publicações (seja de psicanalistas, filósofos, epistemólogos e cientistas de outras áreas) que afirmam o contrário? Enfim, seria pedir demais elevarmos o nível da discussão? Seria muito solicitar que as disputas de mercado e de influência ficassem de lado para que pudéssemos olhar para o problema com o mínimo de seriedade que ele exige? Ou ainda, qual seria o risco de colocarmos não somente a cientificidade da psicanálise me questão, mas num contexto mais amplo, levar o debate também para a pertinência e alcance de conceitos basais de outras áreas, da efetividade de diferentes clínicas e, sobretudo, da importância em se reafirmar clínicas fundamentadas na palavra frente aos avanços irrestritos e irrefletidos da indústria farmacêutica que tem nos levado a uma medicalização da vida e à inflação diagnóstica como estratégia de nomeação de si e do mal-estar inerente ao humano?
Para concluir, reafirmo que o alto poder explicativo da metapsicologia freudiana, que o rigor metodológico e a riqueza de dispositivos clínicos da técnica analítica refinada por Lacan, somado aos estudos de efetividade da prática psicanalítica não me deixam margem para duvidar da cientificidade da psicanálise. Mais do que isso, não vejo motivo também para levantar dúvidas sobre o caráter provisório de suas postulações. Há mais de um século que produzimos e publicamos em revistas científicas os resultados de nossas pesquisas, e o diálogo segue em aberto. As psicanálises contemporâneas não são fruto de adesões religiosas, mas do recorte e recomposição dos campos em função da produção científica. Importante ressaltar que a afirmação da cientificidade da psicanálise não deve ser lida como demérito ou vitória numa disputa entre clínicas. Cientificidade não é uma corrida ou um esporte com vencedores e derrotados. Há espaço para diferentes abordagens, e a multiplicidade de opções é bem-vinda por aqueles que procuram transformar suas realidades e seus sofrimentos. Faz-se necessário reencaminhar o âmbito das nossas discussões, ou fracassamos todos na pobreza de um diálogo reducionista.
Sobre Tiago Ravanello: Psicanalista e pesquisador. Doutor e Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo parte de seu doutorado sido realizada como bolsista do Centre de Sciences du Langage da Université de Paris - X - Nanterre pelo programa CAPES/PDEE. Realizou seu pós-doutorado em Psicologia/Psicanálise na Universidade de São Paulo (USP).
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