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Como escolher um curso de Psicanálise?

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    Instituto ESPE
  • 28 de mai.
  • 8 min de leitura

Atualizado: 15 de ago.

Texto escrito por Renata Wirthmann, Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília com pós-doutorado em Psicanálise pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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Nunca nos gabamos da completude e inteireza de nosso saber e de nossa capacidade; estamos prontos, agora não menos que antes, a admitir as imperfeições de nosso conhecimento.

(Freud, 1919)

Vivemos em uma época marcada pela busca incessante de soluções rápidas, promessas fáceis e pela ilusão da completude. A lógica contemporânea, orientada pela eficiência e pelo imediatismo, institui uma expectativa de que tudo na vida — inclusive os processos formativos — possa ser rentável e concluído com o menor esforço possível. O saber, reduzido à lógica do mercado, tornou-se mais um bem de consumo dentre tantos outros, oferecido em pacotes compactos, cursos relâmpago e certificados que prometem mais do que podem entregar. Infelizmente, a psicanálise também tem sido alvo dessa lógica perversa, na qual até mesmo aquilo que, por sua própria estrutura, se apresenta como interminável — a formação do analista — tem sido transformado em mercadoria terminável. Multiplicam-se as ofertas de cursos que asseguram a possibilidade de “tornar-se psicanalista” em poucos meses, entregando, ao final do processo, não apenas um diploma, mas até mesmo uma carteirinha profissional supostamente legitimada por falsas instituições e entidades autorreferenciadas, criadas, exclusivamente, com o objetivo de atender à ânsia de um reconhecimento formal que substitua a árdua tarefa formação permanente de um analista. Contudo, essa oferta excessivamente abundante e perigosamente sedutora revela um desconhecimento radical da própria da psicanálise. Como já advertia Lacan (1967/2003) em sua Proposição de 9 de outubro de 1967, a formação analítica não ocorre aos moldes das formações tradicionais. A psicanálise não se transmite como qualquer outro saber. A formação do analista é, antes de tudo, uma travessia ética que atravessa o campo da teoria, da clínica e, fundamentalmente, da própria experiência analítica. Trata-se de um processo que não se conclui em um prazo predefinido, tampouco se encerra na obtenção de um título ou documento oficial. A formação é permanente, sustentada por uma experiência do não-saber que exige do sujeito uma constante reinvenção da sua própria formação. É nesse ponto que a psicanálise se diferencia radicalmente de outras práticas terapêuticas ou educacionais: não existem atalhos, não  existem fórmulas e, sobretudo, não existe um ponto final. Como nos lembra Lacan (1962-1963/2005), “o desejo, para se afirmar como verdade, envereda por um caminho em que, sem dúvida, só consegue fazê-lo de uma maneira que chamaríamos de singular”.

           Diante da banalização crescente da formação analítica, torna-se urgente reafirmar que a psicanálise não pode ser reduzida a uma prática de mercado ou a uma simples prestação de serviços. Ela se inscreve, desde sua origem, como uma prática de resistência à normatização dos saberes e à homogeneização dos modos de existência. Buscar um curso de psicanálise é, fundamentalmente, recusar as soluções fáceis, enfrentar a angústia da incompletude e sustentar, no próprio ato formativo, a ética que irá definir a prática clínica.

1. A Formação do Analista: Uma Travessia Ética Freud foi extremamente claro ao afirmar que a psicanálise não é uma profissão como qualquer outra. Ao contrário da expectativa por resultados rápidos e soluções fáceis, ele advertia: “a indagação e a busca não apontam para resultados rápidos, e a menção da resistência deve levá-los a esperar coisas desagradáveis. Sem dúvida, o tratamento psicanalítico faz grandes exigências tanto ao paciente como ao médico” (Freud, 1905).

            Não se trata, portanto, de uma técnica a ser aplicada mecanicamente, seguindo manuais ou protocolos, tampouco de um corpo de conhecimentos que possa ser dominado de forma plena e definitiva. A psicanálise, enquanto saber sobre o inconsciente, implica a posição ética daquele que se propõe a ocupar o lugar de analista — uma posição que não se sustenta apenas no saber acumulado, mas no modo como o sujeito se confronta com a falta, com o não-saber e com o impossível de ser plenamente conhecido.

            Freud sempre alertou que o saber analítico não poderia ser adquirido apenas por meio do estudo teórico. Aqueles que desejam tornar-se analistas, afirmava, devem, antes de tudo, atravessar sua própria experiência de análise. Sem esse percurso singular, não estarão em condições de manejar a transferência ou lidar com as resistências que, inevitavelmente, emergem no tratamento.

            A formação analítica, portanto, jamais poderá ser reduzida a um curso relâmpago com certificado e carteirinha. Ela exige o que Lacan formalizou na Proposição de 9 de Outubro de 1967: a sustentação de um tripé composto pela análise pessoal, supervisão clínica e estudo teórico permanente. É somente a partir dessa tríplice experiência que uma analista poderá se autorizar: “o psicanalista só se autoriza de si mesmo” (Lacan, 1967/2003)

            Podemos afirmar que, se há algo que caracteriza a psicanálise, é a resistência à tentação das respostas prontas. A formação do analista é, em si mesma, uma experiência da falta e da impossibilidade de completude. Quando Freud escreve Análise Terminável e Interminável (1937) ele não falava apenas da experiência do analisando, mas também da impossibilidade de concluir de forma definitiva a própria formação de um analista, pois sempre restará algo que falta e que escapa, um resto que resiste a qualquer pretensão de fechamento. Não há, portanto, formação breve. Toda promessa de rapidez, de carteirinhas ao final de um curso ou de um suposto “reconhecimento oficial” deve ser recebida com desconfiança. Diante de tantas ofertas, é urgente, portanto, refletir: como escolher, de forma crítica e responsável, um curso de psicanálise que realmente contribua para a formação de um analista? Como avaliar a confiabilidade de um curso? Quais os critérios para escolher um bom curso?

            Em tempos marcados pela pressa e pela ilusão de soluções imediatas, retomar essas perguntas é já um ato de resistência. E, talvez, o primeiro gesto ético que se espera de quem pretende fazer a travessia da formação da psicanálise.


2. Como escolher um curso de Psicanálise? Em um mercado saturado de promessas vazias, cabe perguntar: como escolher um curso de formação em Psicanálise?

            Diante dessa difícil e importante tarefa, alguns elementos podem servir de guia para a procura pelo melhor percurso de formação e quais locais podem contribuir. Perguntas como: quem são os professores que conduzem o curso? Possuem experiência clínica consolidada? Estão ligados a instituições de psicanálise reconhecidas? Qual a seriedade do trabalho teórico que realizam? Como nos ensina Freud, a transmissão da psicanálise não se faz apenas por meio da palavra, mas, sobretudo, pela experiência vivida. E essa experiência não se adquire na pressa de cursos breves, mas no tempo longo da travessia.

            Se há um critério seguro para avaliar a seriedade de um curso, ele está no seu compromisso com a ética da psicanálise e com a recusa das soluções fáceis. Por isso, antes de se inscrever, investigue:

•      O currículo do curso é baseado em fontes primárias ou apenas em comentadores?

•      Há espaço para debates e interlocuções críticas, ou apenas a transmissão de conteúdos prontos?

•      O curso propõe uma reflexão ética sobre a formação e o lugar do analista?

•      Quem está por trás do curso, na organização da grade e seleção dos professores?

•      Qual a formação e a prática clínica dos professores convidados?

 

Evite cursos que:

•      Reduzem a psicanálise a uma “técnica de intervenção rápida”;

•      Oferecem resumos e apostilas no lugar do retorno direto aos textos de Freud e Lacan;

•      Prometem “formação em seis meses” ou “habilitação imediata para clínica”;

•      Oferecem carteirinhas ou “credenciais oficiais”.          


3. De que modo a pós-graduação pode compor a formação de um analista? A formação do analista, como propôs Lacan em sua Proposição de 9 de Outubro de 1967, sustenta-se sobre um tripé fundamental: análise pessoal, supervisão clínica e estudo teórico permanente. Uma boa pós-graduação pode — e deve — contribuir especialmente nesse terceiro eixo, oferecendo sólidos fundamentos teóricos, contato com textos originais de Freud, Lacan e outros autores, e discussões clínicas que provoquem o pensamento crítico.

            Uma pós-graduação em psicanálise pode ter um papel relevante na formação do analista desde que concebida a partir de um compromisso ético e teórico consistente. A pós-graduação e cursos temáticos de psicanálise podem ser espaços privilegiados de aprofundamento teórico e de interlocução, onde o futuro analista é convocado a confrontar-se diretamente com a complexidade dos conceitos freudianos e lacanianos, sem ceder à tentação de resumos simplificadores ou leituras superficiais É nesse exercício de retorno constante aos textos fundadores — aquilo que Lacan chamou de retorno a Freud — que o pensamento crítico se sustenta e se renova.

            Contudo, é preciso saber distinguir entre um espaço formativo que convida ao trabalho rigoroso e crítico e aquele que se limita a uma oferta meramente mercadológica. A primeira perspectiva convoca o sujeito à leitura atenta, ao questionamento ético e à sustentação daquilo que Freud chamava de Unbehagen — o mal-estar que é próprio da posição analítica, sempre marcada pela incompletude e pela ausência de garantias. Já a segunda promete soluções rápidas, se limita a resumos didáticos no lugar do confronto com os textos, certificações aceleradas e um empobrecimento teórico que afasta o sujeito da experiência efetiva do inconsciente.

            Freud foi claro ao afirmar, já em Análise terminável e interminável (1937), que não apenas a análise do paciente, mas também a própria formação do analista é um processo sem conclusão definitiva. Existe sempre um resto, algo que escapa, um ponto de impossibilidade que impede o fechamento pleno do saber. É justamente esse resto que convoca o analista a seguir em formação, sustentando a ética da falta.

            Se o que se busca é apenas um título, o mercado está repleto de ofertas dispostas a entregá-lo. Mas se o que se deseja é trilhar, de fato, o caminho da formação, é preciso estar ciente de que se trata de um percurso sem atalhos, que exige tempo, escuta, responsabilidade e, acima de tudo, a coragem de não ceder à tentação das promessas fáceis — essas que prometem uma aplicação técnica ou a aquisição de um saber pré-fabricado, ignorando que, como afirmou Lacan no Seminário 11 (1964), “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, e, por isso, resiste a toda tentativa de domínio técnico ou de controle total.

            Se há um caminho ético a seguir, ele é o da travessia — e essa não se realiza sem mal-estar e desamparo. Aquele que deseja ocupar o lugar de analista deve estar disposto a perder a segurança das identificações imaginárias e a enfrentar o vazio que se abre quando o saber do Outro é reconhecido como inconsistente. Como nos ensina Lacan (1967/2003), “o psicanalista só se autoriza de si mesmo”, e é nessa autorização ética, marcada pelo reconhecimento da própria falta, que se sustenta a prática analítica.

            Assim, a formação do analista não pode ser pensada como um processo com ponto de chegada definitivo. Ela é, por excelência, um percurso inacabado, sustentado na ética da falta, na escuta atenta do inconsciente e na renúncia à tentação de ocupar o lugar de um saber absoluto. Trata-se, em última instância, de sustentar o que Freud já indicava como condição para o trabalho analítico: a disposição para enfrentar o mal-estar, a incerteza e o inacabamento próprios da condição humana.

A preparação para a atividade analítica não é simples e fácil, o trabalho é duro e a responsabilidade é grande. 

(Freud, 1926)

Referências

FREUD, Sigmund. Sobre psicoterapia e outros textos (1904-1905). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. (Obras completas, v. 6).

FREUD, Sigmund. O interesse pela psicanálise e outros textos (1913-1914). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. (Obras completas, v. 13).

FREUD, Sigmund. O caminho da terapia psicanalítica e outros textos (1918-1920). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Obras completas, v. 17).

FREUD, Sigmund. Psicanálise e outros textos (1926-1929). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. (Obras completas, v. 20).

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Obras completas, v. 21-22).

FREUD, Sigmund. Análise terminável e interminável e outros textos (1937-1939). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Obras completas, v. 23).

Lacan, J. (1964). Seminário 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

Lacan, J. (1966). Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

Lacan, J. (1967). Proposição de 9 de Outubro de 1967 sobre o Psicanalista da Escola. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

 
 
 

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