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Como começar a estudar Freud?

  • Foto do escritor: Instituto ESPE
    Instituto ESPE
  • 15 de out.
  • 7 min de leitura

Texto escrito por Renata Wirthmann, Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília com pós-doutorado em Psicanálise pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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Existem vários caminhos pelos quais eu recomendaria uma travessia pela obra de Freud. Inúmeros percursos possíveis para esta nossa formação permanente. A vantagem de haver tantos caminhos é, justamente, a possibilidade de sempre recomeçar a formação e sempre reencontrar, como pela primeira vez, o texto freudiano. Cada sequência permite uma nova experiência formativa e uma pesquisa inédita, mesmo para aqueles que já estudam psicanálise há décadas. Duas ressalvas são imprescindíveis para começarmos: não existe psicanálise sem Freud e a teoria psicanalítica se estrutura na lógica da revisão infinita, de modo que se trata de uma teoria aberta e uma formação permanente. A formação do analista assim como a teoria psicanalítica são inacabadas por princípio, tanto que, em 1937, em Análise Terminável e Interminável, Freud apontou que a psicanálise renunciou qualquer pretensão de ser tornar completa e terminada. Neste texto, escrito dois anos antes de sua morte, Freud apontou que cada formulação teórica sempre será potencialmente provisória e possuirá intermináveis possibilidades de interpretação, de um modo semelhante à proposta do percurso de uma análise. Decide-se por um fim de análise, não o acha pronto. Constrói-se pôr uma interpretação, não a encontra acabada. Para compreender esse funcionamento de leitura e escrita da teoria psicanalítica, retomarei a origem judaica de Freud. Embora não tenha se detido profundamente à prática religiosa do judaísmo, sem dúvida o médico austríaco foi muito impactado pela cultura textual judaica. Tanto que é assim que Freud se apresenta em sua Autobiografia, de 1925: “Nasci em 6 de maio de 1856 (...). Meus pais eram judeus, e eu também permaneci ju­deu”, e do mesmo modo constata, citando Goethe, em Totem e Tabu, de 1913: “Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o, para fazê-lo teu”. Recomendo, para o aprofundamento desta relação entre a obra de Freud e a cultura judaica, o livro da professora e psicanalista Betty Fuks, Freud e a Judeidade: A vocação do exílio, de 2000. Este atravessamento da origem judaica de Freud na escrita da psicanálise chega até nós, analistas em formação permanente, pela maneira como somos convidados a estudar a psicanálise. Na história do povo judeu, regularmente nômade e em exílio, a prática da leitura-escritura infinita do Antigo Testamento é uma marca do modo como mantiveram, por séculos de perseguição, a tradição judaíca. Esta se sustenta, fundamentalmente, através de comentadores do Texto, que sempre ousam dizer para além do que aparece rigorosamente escrito no Livro, de tal modo que cada leitor é convidado a ser um intérprete. Este atravessamento da origem judaica de Freud na escrita da psicanálise chega até nós, analistas em formação permanente, pela maneira como somos convidados a estudar a psicanálise. Na história do povo judeu, regularmente nômade e em exílio, a prática da leitura-escritura infinita do Antigo Testamento é uma marca do modo como mantiveram, por séculos de perseguição, a tradição judaíca. Esta se sustenta, fundamentalmente, através de comentadores do Texto, que sempre ousam dizer para além do que aparece rigorosamente escrito no Livro, de tal modo que cada leitor é convidado a ser um intérprete. Para ler Freud, um analista precisa ler, e ler bem, repetidas vezes. Mas não de modo rápido e raso. Um analista precisa ler com especial atenção ao detalhe, permitir uma leitura que encontre ambiguidades, busque o que está para além do dito e do não-dito. Eis o convite que Freud nos faz antes de adentrar em sua obra. Somos convidados a estudar a obra de Freud, numa incessante tarefa de interpretar e de combinar seus textos, definindo, inclusive, a sequência que se pretende ler, conforme o percurso almejado. É importante destacar que o próprio Freud toma a si mesmo como comentador de sua própria obra, o que é facilmente observado na enorme quantidade de notas de rodapé que ele foi inserindo em seus escritos ao longo das décadas, mesmo após a publicação de cada um desses textos. Tanto que o livro que inaugura a psicanálise, A Interpretação dos Sonhos, teve várias edições, com acréscimos e revisões, ao longo da vida de Freud, demonstrando este funcionamento aberto e em constante construção do pensamento freudiano. No texto Radiofonia, de 1970, Lacan define que judeu é quem sabe ler, assim como o psicanalista. Não há formação em psicanálise sem este saber ler judaico. A psicanálise se funda, portanto, com Freud e a partir desta leitura. Mas que leitura é esta? Um tipo de leitura, a partir de uma epistemologia milenar, na qual nenhuma interpretação é final, o que nos leva à constatação de que nenhuma clínica também poderá ser protocolar. Escrita e reescrita tornam-se, a partir de Freud, nossa prática metodológica, na qual suspendemos dogmas e tomamos o saber e a compreensão como travessia. Desse modo, exponho, neste texto, percursos na obra de Freud arquitetados como mosaicos: leituras fora da ordem cronológica ou por temáticas específicas. Por exemplo, para alguém que está começando a ler Freud, pela primeira vez, eu recomendaria seu texto inacabado e com publicação póstuma, Compêndio de Psicanálise, escrito em 1938. Este texto é como um mapa da obra freudiana, um percurso panorâmico por todo seu trabalho, que pode ser considerado um roteiro de travessia que permite localizar cada conceito, desde seu surgimento, e acompanhar a trajetória de cada um destes conceitos ao longo de quatro décadas de escrita. Este percurso pelo Compêndio nos mostra que, na obra de Freud, não existem conceitos abandonados, mas um percurso em constante construção e trabalho em cada um desses conceitos. Retomando a questão de ser um texto inacabado e póstumo, eis uma metáfora impecável deste nosso percurso permanente e errante de formação. Freud morreu antes de fazer uma revisão final, deixando no texto lacunas que nos lembra que este é um projeto aberto, assim como toda sua obra, que poderá ser lida, relida, complementada e contestada interminavelmente. Tanto que hoje estou aqui, 125 anos após a fundação da psicanálise, elaborando percursos de estudo e de leitura da obra freudiana. Escrevo este texto, justamente por considerar que sempre há muito a se escrever. Agora, pensando em percursos temáticos, eu proponho fazer algumas montagens, sempre dependendo em qual destino o leitor quer chegar. Por exemplo, se o objetivo for o estudo da feminilidade, eu recomendaria o percurso cronológico de Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), depois Bate-se numa criança, de 1919, seguido por Psicogênese de um caso de homossexualidade feminina, de 1920, Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos, de 1925, e, finalmente, os ensaios Sexualidade Feminina e Feminilidade, de 1931 e 1933, respectivamente. Por outro lado, se o percurso pretendido fosse sobre as psicoses, eu recomendaria um percurso anti-horário, de trás para frente, cronologicamente. Iniciando com dois ensaios de 1924: A neurose e a psicose e A perda da realidade na neurose e na psicose. Depois te convidaria a voltar um pouco no tempo, para 1917, na Conferência XXVI: A teoria da libido e o narcisismo; fazendo uma parada em 1915, em Um caso de paranoia que contraria a teoria psicanalítica da doença. Então, finalmente aterrissar com boas condições de fruir melhor do querido caso Schreber, de 1911, intitulado Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia. Um terceiro percurso maravilhoso, principalmente para aqueles que gostam muito de história, antropologia e sociologia, tem o propósito de estudar a relação entre psicanálise e cultura. Este terceiro percurso já não seguiria nem a ordem cronológica, nem o contrário disso. Nossa viagem iniciaria em 1930, com um dos mais célebres ensaios freudiano, O mal-estar na civilização. Depois investigaríamos Totem e Tabu, de 1913, saltaríamos para 1933, com a carta-resposta de Freud à Einstein: Por que a guerra?, e terminaria este percurso com O futuro de uma ilusão, de 1927 Por fim, uma pequena lista de textos freudianos sobre a invenção da psicanálise, mais especificamente sobre o inconsciente. Para este percurso através da construção do principal conceito da psicanálise, que funda o método psicanalítico da associação livre e, também, nossa formação permanente e nossa forma específica de leitura, o percurso de estudo começaria no capítulo 7, do livro Interpretação dos Sonhos, de 1900. Depois saltaria para 1915 e te convidaria para ler a seguinte sequência de quatro textos: Pulsões e seus destinos, Recalque, O inconsciente e o ensaio Repetir, recordar e reelaborar. Por fim, encerraria este percurso em 1933, nas Novas Nonferências Introdutórias à Psicanálise, mas especificamente com o texto A Dissecção da Personalidade Psíquica. Concluo, então, reafirmando a intenção que norteou esta travessia: oferecer não uma rota fixa, mas um convite permanente à errância criativa por entre os textos de Freud. Ao propor percursos movediços – ora cronológicos, ora temáticos, ora invertidos –, procurei apenas sugerir pontos de partida que, ao se entrelaçarem com o desejo singular de quem lê, possam suscitar novas combinações, novos recortes e novas perguntas. O que espero é que cada analista em formação – e somos todos, sempre, analistas em formação – encontre neste mosaico o estímulo necessário para regressar ao texto freudiano com olhos renovados, acolhendo as lacunas, os descompassos e as revisões como parte constitutiva de um pensamento que se recusa a se fechar em definitivo. Desejo que o leitor experimente, em cada retomada, o efeito de habitar a tradição talmúdica que atravessa a psicanálise: ler, comentar, contestar, reescrever. Que a lógica da revisão infinita não seja percebida como falta, mas como garantia de rigor teórico e ético. Lembrando-nos de que nenhum conceito se esgota em sua primeira formulação, nenhuma prática clínica se resolve em protocolo e nenhum analista se conclui em diploma. Ao propor roteiros temáticos e cronologias alternativas, ambiciono inspirar percursos singulares que reflitam as perguntas, os afetos e os impasses de quem lê – porque é nesse encontro entre texto e desejo que a psicanálise permanece viva.  

*Renata Wirthmann é psicanalista, escritora e professora do curso de Psicologia da Universidade Federal de Catalão (UFCAT). Possui pós-doutorado em Teoria Psicanalítica na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutorado em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB), mestrado em Psicologia pela UnB e graduação em psicologia pela PUC-GO.


 
 
 

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