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O Complexo de Édipo e a diferença sexual

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    Instituto ESPE
  • 23 de out.
  • 9 min de leitura

Texto escrito por Renata Wirthmann, Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília com pós-doutorado em Psicanálise pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Capa de artigo de blog do Instituto Espe. A imagem mostra uma pintura clássica de uma criança com um livro e expressão pensativa, ao lado do título em destaque: 'Como trabalha um psicanalista de crianças'.

É indispensável voltar à origem do Complexo de Édipo, antes de qualquer análise que vise abordar esse conceito em torno do qual Freud organiza, desde a clínica das neuroses, até o percurso do desenvolvimento psicossexual. A partir desse movimento de retorno, percebemos que a construção do conceito tem seu início nas cartas de Freud, endereçadas a Wilhelm Fliess, entre os anos de 1896 e 1897. Num primeiro momento, as elaborações freudianas sobre a problemática edípica se mesclavam ao seu processo de autoanálise e figuravam como descobertas pessoais de sua relação com seus pais e com seus filhos.  Posteriormente, Freud percebeu que a temática desta mitologia não se remetia apenas a ele, mas poderia ser pensada como um operador universal da vida psíquica.

De um modo muito sutil, podemos localizar o primeiro germe deste conceito na carta de Freud a Fliess, em 2 de novembro de 1896, escrita cerca de uma semana após a morte de seu pai, aos 81 anos de idade. Nesta correspondência, Freud relata brevemente um sonho que tivera na noite posterior ao funeral de seu pai e no qual se deparava com uma placa onde se lia: “Pede-se que você feche os olhos”. Para Freud, a frase da placa teria dois sentidos que lhe remetiam, fundamentalmente, à culpa diante do dever não cumprido na sua relação com seu pai.

A primeira menção mais explícita à questão edípica se dá numa correspondência de 31 de maio de 1897, quando Freud relata um outro sonho edípico, mas desta vez com uma de suas filhas, a Mathilde. Na carta, Freud interpreta e escreve a Fliess: “O sonho, é claro, mostra a realização do meu desejo de encontrar um pai que seja o causador da neurose”.

Poucos meses depois, em 15 de outubro de 1897, Freud constata com mais clareza a formulação do Complexo de Édipo: “Um único pensamento de valor genérico revelou-se a mim. Verifiquei, também no meu caso, a paixão pela mãe e o ciúme do pai, e agora considero isso como um evento universal do início da infância”, e concluiu que o mito grego de Édipo era capaz de captar essa experiência infantil, na relação amorosa com os pais, que toda pessoa reconhece porque a sente dentro de si.

Assim como nas correspondências a Fliess, a temática do Édipo nos textos de Freud, que estruturam a invenção da psicanálise, apareceu primeiramente através do estudo dos sonhos. Esta foi abordada a partir de seus próprios sonhos, de sonhos de pacientes e de pessoas próximas (familiares e amigos), provenientes de fontes literárias, históricas ou anedóticas no livro que inaugura a psicanálise: A interpretação dos sonhos, de 1900.

Embora, como constatamos, a temática edípica já circulasse há muitos anos na escrita freudiana, o conceito Complexo de Édipo só foi estabelecido em 1910, no texto Um Tipo Especial da Escolha de Objeto Feita pelos Homens.  A partir desta data, Freud o tratará como o complexo nuclear das neuroses, assim como o eixo central da sexualidade humana, das identificações, dos sintomas e do destino pulsional. À medida que as elaborações freudianas avançam ao longo das décadas de construção da psicanálise, o conceito e a importância do Complexo de Édipo vai ganhando cada vez mais densidade.

Essa importância central do Édipo na formulação de Freud nos leva a uma curiosidade: por que ele decide recorrer especificamente ao mito grego do Édipo? A mesma carta de 1897 oferece a pista: a tragédia de Sófocles mobilizava o público europeu do século XIX com uma força inusitada que parecia confirmar, através da arte, aquilo que a clínica já revelava no divã: o desejo incestuoso à mãe e o ódio parricida que cada um guarda recalcado dentro de si. O mito fornece, na forma de tragédia, ferramentas capazes de traduzir tensões arcaicas. Percebemos, na arte, um meio privilegiado de acessar conteúdos inconscientes que, de outro modo, estariam recalcados e inacessíveis.

Outra importante questão advém da própria estrutura da trama edípica: amar a mãe e rivalizar com o pai é um fenômeno universal ou somente masculino? Eis um dos trabalhos mais complexos da obra freudiana: construir não só o conceito do Complexo de Édipo, mas localizar a diferença deste na sexualidade masculina e feminina. Pensar sobre isso é também se fazer um convite para a compreensão do Complexo de Édipo através do percurso da diferença do desenvolvimento psicossexual dos meninos e das meninas.

Em um momentos mais iniciais de sua teoria, Freud, no ensaio Sobre as teorias sexuais das crianças, de 1908, tomou a questão da sexualidade feminina como um tema de difícil apreensão devido a “circunstâncias desfavoráveis” como as questões culturais e morais de sua época. Num segundo momento, no texto A organização genital infantil, de 1923, Freud passou a considerar a possibilidade de falar do feminino a partir da inversão do processo de desenvolvimento sexual do menino – com a afirmação de que a dissolução do Complexo de Édipo do menino e da menina ocorrem “de maneira precisamente análoga”.

A noção final acerca da sexualidade feminina, que lhe acompanhou até o final de sua obra, só foi escrita por Freud a partir de 1925, com o importante trabalho Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos, que oferece a noção de que “nas meninas, o Complexo de Édipo levanta um problema a mais que nos meninos”. Este problema a mais se relaciona com a importância da fase pré-edipiana e com o complexo de castração que, para as meninas, será um processo primário, que antecede, possibilita e introduz o Complexo de Édipo, ao contrário dos meninos, em que o Édipo é o processo primário e anterior à castração. É justamente a primazia da castração no desenvolvimento psicossexual das meninas que leva a sexualidade feminina a ter este problema a mais em relação aos meninos e esta primazia corresponde, como exposto em Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos, de 1925, “à diferença entre uma castração que foi executada e outra que simplesmente foi ameaçada”.

Na Conferência XXXIII: Feminilidade, de 1933, Freud afirma que, antes disso, no início do desenvolvimento psicossexual, tanto a menina quanto o menino, iniciaram o percurso da mesma forma pois, ao nascer, nada os distinguia psicologicamente assim como não havia nenhum vestígio do reconhecimento da diferença anatômica. Consequentemente, ambos tinham o mesmo objeto de amor: a mãe; o pai “é apenas um rival incômodo”, com o mesmo objetivo amoroso, voltado para o lado ativo, amar.

Por que a mãe foi escolhida, por ambos, como objeto de amor? Pela simples razão de que este lugar, de objeto de amor, é garantido a quem tomou, para si, os cuidados de higiene e de alimentação do bebê desde o nascimento. Essas primeiras relações da criança com a mãe são passivas e responsáveis por satisfações, porém a criança, como observa Freud em Sexualidade Feminina, de 1931, mesmo desfrutando dessas satisfações, esforça-se por transformá-las em atividade, devido a uma revolta inequívoca contra a passividade.

O pai será por muito tempo um estranho para a criança, sua presença é, vez por outra, notada como alguém que incomoda a relação de exclusividade que a criança quer ter com a mãe. Prova desta negligência ao pai e exclusividade da mãe pode ser vista nas brincadeiras da menina com bonecas, nas quais estão presentes apenas dois personagens: mãe e filha. Quanto ao objetivo amoroso da criança, têm-se impulsos cheios de desejos intensos e ativos dirigidos para a mãe – tanto a menina quanto o menino querem dar à mãe um filho.

Com a entrada na fase fálica – terceira fase do desenvolvimento psicosexual após as fases oral e anal – ocorre a descoberta da distinção anatômica. O primeiro passo do menino nesta etapa é a descoberta de que possui o falo e a consequente entrada no Complexo de Édipo. A menina, por sua vez, frente ao genital do sexo oposto, descobre de imediato sua falta e desenvolve um processo intitulado por inveja do pênis: “Ela viu, sabe que não tem e quer tê-lo”, descreve Freud, em Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos.

Essa descoberta, da distinção anatômica, fará com que a menina tome um rumo radicalmente diferente no seu desenvolvimento. Num segundo momento, após algumas investigações, a menina percebe que outras pessoas também não têm pênis e, por último, chega à conclusão, que a introduz no Complexo de Édipo, de que a mãe é também castrada. Esta é a mais importante das descobertas das distinções anatômicas para a menina, é a marca fundamental de sua entrada nesta nova fase do desenvolvimento.

Por outro lado, a entrada do menino no Complexo de Édipo ocorre logo no início da fase fálica, em que ele se dá conta da diferença entre os sexos e, consequentemente, descobre que possui o falo. Nesta fase, ele prossegue com a masturbação, porém agora vinculando-a aos investimentos objetais do Complexo de Édipo. O menino percebe a presença do falo ao se deparar com a ausência deste em sua irmãzinha ou em sua amiga de brinquedo; e tem uma reação lenta frente à constatação da diferença anatômica. Essa reação, de acordo com Freud, em A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade, de 1923, pode ser dividida em três etapas: num primeiro momento, ele rejeita e acredita que ainda vê um pênis ali onde na menina há uma falta; posteriormente, percebe a contradição entre o que vê e a sua crença, mas, a fim de preservar o próprio órgão, elabora uma teoria em que há um pequeno pênis que ainda vai crescer. Por fim, conclui que o pênis foi retirado, castrado, como punição contra a masturbação.

Ele descobre essa falta, primeiro, nas meninas de idade próxima; mais tarde, percebe que essa característica se estende à mãe e, temendo ter o mesmo fim, interrompe a masturbação. Essas elaborações do menino acerca da possibilidade de castração se estendem por todo o Édipo e podem durar anos. Sendo assim, tem-se o Complexo de Édipo como um processo primário, em que “o pequeno portador de pênis”, como descrito por Freud em A dissolução do Complexo de Édipo, condiciona a mãe como objeto de amor, passa a ter ódio pelo seu rival, o pai, ao mesmo tempo que se identifica com ele, mantendo o desejo de dar um filho à mãe. Com a conclusão das elaborações do menino, na qual ele descobre que à mãe falta o falo – o que coloca em risco o seu próprio órgão –, entra em cena o Complexo de Castração. Este atua, no menino, como um processo secundário, que resulta no despedaçamento do Complexo de Édipo, dando origem ao supereu, herdeiro do Édipo.

A menina, por sua vez, entrará mais tarde no Complexo de Édipo, pois, antes, como observa o psicanalista Serge André, em O que quer uma mulher?, terá duas tarefas a mais que o menino: “trocar de sexo” e trocar de objeto de amor. A menina, até então, tinha a atenção voltada à masturbação fálica, tendo como órgão sexual o clitóris, e seu objetivo amoroso estava voltado para o “amar” à mãe. Com a descoberta da castração da mãe, a menina percebe que não poderá obter, daquela relação, o seu tão desejado pênis, e é justamente por se dar conta de que o que ela própria tem não é satisfatório, que abandona a masturbação, por considerar uma atividade essencialmente masculina.

Durante todo percurso do Complexo de Édipo,  a mãe continua presente, porém como objeto de identificação – a menina quer ocupar o lugar da mãe junto ao pai, a fim de ter, com ele, simbolicamente, um filho. A situação edipiana, para a menina, é o resultado de uma evolução longa e difícil que trará a possibilidade de descanso, de refúgio, pois não há mais o temor da castração e o período de latência está próximo de se iniciar. Sem ter um motivo que conduza ao fim o Complexo de Édipo feminino, a menina permanece nessa posição por um tempo indeterminado; o Édipo, assim, não é jamais completamente destruído e, consequentemente, ele fará parte do futuro da mulher.

Diante de tudo isso, percebemos que o Complexo de Édipo, longe de se reduzir a uma fórmula universal rígida, ganha contornos distintos quando atravessado pela diferença sexual. Freud dedicou décadas à tentativa de compreender o modo como a sexualidade se estrutura a partir da relação com os pais, com o corpo e com a alteridade. No entanto, mesmo com o esforço de teorizar a sexualidade feminina, permaneceu um ponto de opacidade que ele mesmo reconheceu. Na concepção final de Freud, acerca da feminilidade, o desejo é tomado como central na mulher: o desejo por um falo que, no decorrer do seu desenvolvimento, se transformará em um desejo por um filho, segundo a equação simbólica pênis-filho. Então tornar-se mulher equivale a tornar-se mãe?

Freud não ficou satisfeito com suas próprias conclusões sobre o destino da sexualidade feminina e não considerou esta equivalência como definitiva, mas como um limite seu. Por isso, nesse ponto de suas formulações, Freud chega a dizer, em Conferência XXXIII: Feminilidade, de 1933, seu último texto sobre o tema, que deveríamos perguntar aos poetas acerca de coisas como essa. Assim, ao fim do percurso freudiano, o que resta do Édipo não é um modelo a ser normatizado, mas uma travessia psíquica que cada um, meninos e meninas, realiza à sua maneira — e que deixa marcas tanto na posição sexuada quanto nas formas de amar e desejar.  

*Renata Wirthmann é psicanalista, escritora e professora do curso de Psicologia da Universidade Federal de Catalão (UFCAT). Possui pós-doutorado em Teoria Psicanalítica na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutorado em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB), mestrado em Psicologia pela UnB e graduação em psicologia pela PUC-GO.


 
 
 

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