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Perversão e Psicanálise: um diálogo em constante construção

Atualizado: 8 de mai. de 2023

Texto escrito pelo psicanalista e pesquisador Paulo Roberto Ceccarelli, Doutor em pela Université de Paris VII - Université Denis Diderot (1995), e pós-doutor (Paris VII - 2009). Professor das especializações do Instituto ESPE e coordenador de programas de formação livre.



O título de minha intervenção – Perversão e Psicanálise: um diálogo em constante construção – traduz uma inquietação que foi tomando contornos mais precisos ao longo de minha prática clínica e pesquisas teóricas, e que foi acentuada pelo seminário que coordenei no Instituto ESPE intitulado: Leituras teórico-clínicas da perversão: da medicina à psicanálise.


No seminário, discutimos a “história” da perversão. Isto é, como certas expressões da sexualidade passaram, no início de nossa era sob o julgo da Igreja, a serem considerados desviantes, perversas. As “perversões” eram teorizadas, julgadas e criminalizadas dentro de uma moral sexual em ressonância com o discurso hegemônico de poder. Quando a medicina, e sobretudo a psiquiatria, ganha espaço, outra forma de moralidade aparece na qual a ideia de pecado perde terreno em prol de uma sexualidade ideal ligada à procriação.


Freud se posiciona em rota de choque com estas posições, ao dizer que a sexualidade humana é, em si, perversa (FREUD, [1905] 1976). E, mais ainda, como citado na epígrafe, “a moral sexual – como é definida pela sociedade (...) – parece-me [a Freud] muito desprezível.”


As recentes elaborações psicanalíticas sobre a perversão são, muitas vezes, contaminadas pelas concepções pré-psicanalíticas, sobretudo as da psiquiatria, fazendo com que as teorizações sobre as perversões tenham se transformado em um “ponto cego” da psicanálise.


Muitos psicanalistas, ainda que tenham lido exaustivamente o texto freudiano, continuam a rotular certas manifestações da sexualidade de “perversas”, sem levar a sério o que Freud escreve sobre os destinos da sexualidade humana (TORT, 2000).


Não é fácil adequar a clínica de Freud a uma “teoria psicanalítica da perversão”. Por vezes, tem-se a impressão de que as contribuições de Freud não se aplicam mais. Nas elaborações sobre os chamados “perversos” - assassinos, necrófilos, sádicos e delinquentes - o substantivo ‘perversidade’ frequentemente é ai inserido (RUDGE, 2004).


O estudo das perversões ganhou ainda mais complexidade após a chamada revolução sexual. Essa trouxe a fugaz sensação de que, sem as amarras morais e os ditames da família tradicional, e de posse da nova liberdade, as pessoas seriam capazes de viver mais livremente suas sexualidades, e terem relações com o/a parceira/o de suas escolhas sem os constrangimentos de então. Porém... não foi o que aconteceu: constatamos hoje que a liberação das práticas sexuais não trouxe a felicidade esperada. Nos consultórios, os sintomas ligados ao sexual, assim como a curiosidade infantil em relação à diferença os sexos, permanecem inalterados, o que nos leva a concluir que não há tratamento político para o sexual.


Para Frota Neto (2004, p. 21), a “maior contribuição de Freud quanto à perversão foi subvertê-la, equivocando o campo semântico do termo o suficiente para que se tornasse tão difícil quanto inútil a delimitação de uma estrutura diagnóstica especificamente perversa.” A passagem do termo ‘perversão’ do discurso psiquiátrico do século XIX para o psicanalítico não levou em conta que uma tal passagem acarretou novas percepções e conceptualizações sobre o tema (FROTA NETO, 2004). Ou seja, ao tratamos a perversão como uma categoria de diagnóstico, estaríamos mantendo a lógica da psiquiatria.


Robert Barande (1980, p. 170) radicaliza ainda mais a sua crítica: “a teoria e prática das perversões relevam da clínica psiquiátrica, da medicina legal ou, enfim, de um discurso moralizador, mas não à psicanálise tal como apresentada por Freud”.


Não por acaso Foucault (1985, p. 167) descreve a psicanálise como uma “grande tecnologia da correção e da normalização da economia dos instintos”. Algo próximo à eugenia, eu completaria.


A partir dessas considerações iniciais, enuncio minha intervenção com a pergunta que balizará o meu caminho: qual é o estatuto da perversão na psicanálise? E, para ir ainda mais longe: qual o seu estatuto no interior da revolução sexual? Trata-se de uma dinâmica pulsional resultante da fixação da libido em um ponto cuja satisfação foi particularmente intensa ao longo de seu caminho errático? A consequência de uma relação insuficiente boa nas primeiras trocas significativas mãe/bebê? Uma estrutura marcada pela negação (Verleugnung) da castração? Uma forma erótica do ódio? Uma estratégia de sobrevivência psíquica? A imposição de uma fantasia a alguém que não o consinta? Uma defesa narcísica frente a uma perda insuportável?


Estas breves reflexões sobre o fenômeno “perverso”, longe de serem exaustivas, sugerem que quanto mais tentamos compreender as dinâmicas psíquicas que subjazem as sexualidades “perversas”, desviantes, mais nos distanciamos de uma resposta satisfatória. E mais ainda, como em toda e qualquer expressão da sexualidade, o que chamamos de perversão está intimamente ligado à grade teórica que utilizamos para explicar, senão “diagnosticar”, a manifestação da sexualidade que nos afeta tanto transferencialmente como contratransferencialmente. Enfim, é notória a falta de consenso teórico-clínico sobre as perversões. Há, também, outra pergunta que nos parece incontornável: quando um arranjo pulsional, dentro de uma dada conjuntura cultural, deve ser entendido como uma versão atualizada da sexualidade perverso-polimorfa infantil em contexto de relação de objeto, isto é, um jogo erótico, e quando ela deve ser considerada sintomática e/ou perversa?


Na cultura ocidental, marcada pelo imaginário judaico-cristão, a inquietação que a sexualidade desperta é antiga. Em 1215 o ConcÍlio de Latrão ditou as normas que fizeram da penitência um sacramento, implantando as técnicas de confissão, e a demarcação entre uma prática sexual “normal” e uma oculta e depravada, a perversa que, por seguir caminhos espúrios, deveria ser confessada. E mesmo fora do contexto religioso, as questões relativas as formas de sexualidade permitidas e as proibidas sempre foram assuntos de infindáveis discussões. (Essas infindas altercações testemunham a presença soberana do sexual, do Isso, que sempre faz aparições lá onde menos se esperava, muitas vezes camuflado nas situações mais simples, revelando o retorno do recalcado e/ou do reprimido).


As perversões alcançaram cientificidade graças à medicina legal do século XIX, que centrou o debate entre uma “sexualidade anormal” e um “defeito moral”. A origem desta concepção dizia respeito a indivíduos “vistos por ocasião das perícias médico-legais, cujas condutas sexuais constituem delitos ou crimes” (LANTERI-LAURA, [1979] 1994, p. 140).


Krafft-Ebing, amplamente citado por Freud, foi, sem dúvida, uma das maiores influências no estudo da sexualidade no século XIX. Em seu célebre Psicopatia Sexual (1879) lê-se: "A perenidade da raça humana é garantida por um poderoso impulso natural (Naturtrieb) que exige imperiosamente ser satisfeito" (KRAFFT-EBING, [1895] 1990, p. 5).


A preservação da espécie é tomada como norma, pois tributária de um impulso natural (Naturtrieb): entre uma sexualidade limitada, mas “natural”, e outra mais libertina, mas condenada, posto que desviante e não centrada na procriação, a segunda constituía a perversão. [1] As práticas sexuais que escapavam à reprodução deram origem a uma variedade de desvios que foram, e ainda são amplamente classificados: perversão (1882, Charcot e Magna), narcisismo (1888, Havellock-Ellis), autoerotismo (1899, Havellock-Ellis), sadismo e masoquismo (1890, Krafft-Ebing), dentre outros.


O caso 238 de Krafft-Ebing, diagnosticado como “perversão”, não apresenta contradição à procriação, ou à genitalidade, mas a uma sexualidade ideal:

"Um de meus pacientes (...) casado com uma mulher extremamente bela (...) ficava impotente quando via sua pele alva (...). Mas, no isolamento de um passeio com ela pelo campo, acontecia de ele subitamente forçá-la ao coito no meio da campina ou atrás de um arbusto. Quanto mais ela se recusasse mais excitado ele ficava, com plena potência (...). Mas em casa, na sua própria cama, era totalmente destituído de desejo" (KRAFFT-EBING, [1886] 2000, p. 21).


As perversões foram "criadas" pelos sexólogos e pela psiquiatria: evidentemente, as atividades sexuais que não serviam à reprodução sempre existiram e foram consideradas pecado, pouca vergonha, atentado ao pudor, sodomia e outras tantas nomenclaturas que continuam crescendo, segundo o momento sócio-histórico e a hegemonia discursiva em questão. O novo, contudo, foi que estas atividades foram classificadas e nomeadas, definindo tipos específicos de indivíduos marcados por uma subjetividade, cujo elemento distintivo passou a ser a sexualidade (FOUCAULT, 1985).



Freud e a perversão


No início de seu trabalho, Freud se serve da visão da sexualidade, como era entendida no meio psiquiátrico: uma posição clássica quanto à norma, o que produzia entidades nosográficas baseadas na crueldade e no desvio da genitalidade. Partindo da observação dos fenômenos e dos costumes, Freud situava, na época, a sexualidade humana entre as concepções religiosas, muitas vezes com o julgamento médico e jurídico. Falava de uma ética asceta, acompanhada da punição aos infratores, segundo a norma dos legisladores.


A princípio, Freud não se interessou muito pelo estudo das perversões apresentando-as, de modo geral, como expressões de uma bestialidade original do ser humano (VALAS, 1990). Bestialidade e degenerescência são termos presentes na correspondência com Fliess: “as perversões conduzem regularmente à zoofilia e têm uma característica animalesca” (Correspondência FREUD/FLIESS, [Carta de 11 de janeiro de 1897] , p. 224).


Contudo, com a introdução do inconsciente, a oposição médica entre normal e patológico, ou seja, entre saúde e doença que, basicamente, dividia os homens em dois grupos, se desfaz.


O ponto de partida de Freud, que causou tando mal-estar e indignação, foi dizer que, no ser humano, o impulso (Trieb) nada tem de natural (Naturtrieb), sendo regido não pela reprodução, mas, antes, pelo prazer: a sexualidade humana é uma perversão do instinto!


A Interpretação dos sonhos (1900) revelou a perversão dos “normais”, os crimes do neurótico, os fracassos dos bens sucedidos, os desejos humanos inconfessáveis, além de mostrar que a sexualidade angelical é constituída de pulsões anárquicas, cujo objeto é completamente indiferente, desde que a satisfação seja alcançada: “nada protegerá a virtude tão eficazmente quanto uma doença” (FREUD, [1908] 2020, 83).


Com a ideia escandalosa segundo a qual só existem normas morais, Freud sustenta que “todos os psiconeuróticos são pessoas de inclinações perversas fortemente acentuadas, mas recalcadas e tornadas inconscientes no curso de seu desenvolvimento” (FREUD, [1905] 1976).


Para Freud ([1905] 1976, p. 161), “as perversões, portanto, não devem ser referidas simplesmente à fixação das inclinações infantis, mas também à regressão às mesmas devido à obstrução de outros canais da corrente sexual. Por isso as perversões são também acessíveis à terapia psicanalítica".

A leitura dos textos de Freud revela que a perversão nunca foi um problema como conceito psicopatológico. Mesmo nos momentos centrais da sua elaboração teórica, Freud evocou a perversão apenas ocasionalmente Barande (1980).


Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), a perversão é marcada pelo contraponto neurose/negativo, perversão/positivo: a neurose é o negativo da perversão. Se entendermos a formulação freudiana com o rigor que ela suscita, percebemos que o positivo, isto é, como as coisas deveriam ser, é a perversão. Esta, devido ao recalque de moções pulsionais inadmissíveis, se transforma em neurose.


Em Uma criança é espancada: uma contribuição ao estudo das perversões sexuais (FREUD, 1919), a perversão é teorizada a partir da dinâmica do complexo edipiano.


Quanto ao texto Fetichismo (FREUD, 1927), considerado por muitos como a única teorização válida sobre a perversão, a recusa (Verleugnung) da castração é apresentada como o mecanismo central da perversão. Curiosamente, o termo perversão não é citado sequer uma vez no texto freudiano!


Cada modelo clínico propõe uma interpretação diferente marcando a escuta e, consequentemente, a direção do tratamento desta manifestação da sexualidade. Tantos autores da Escola Inglesa, quanto da Americana, relatam acompanhamentos clínicos de sujeitos perversos cujos resultados foram satisfatórios. Já alguns psicanalistas da Escola Francesa entendem a perversão como uma estrutura que resiste ao trabalho analítico. Logo, o perverso, contrariamente à afirmação freudiana, não seria analisável. A cada um de entender e se posicionar nessas diferenças, cujos desdobramentos teórico-clínico-éticos têm consequências de peso (CECCARELLI, 2005).


Para Winnicott ([1951] 1978), o objeto transicional (o cobertor azul que representa a mãe para o bebê, não é, de fato, mãe) é tido como perversão. Para o autor, existiria um estágio no desenvolvimento do ser, onde o prazer de um sujeito, custa o prazer do outro.


Para Melanie Klein ([1940] 1996), antes da posição depressiva, o bebê passa pelo estádio que pode ser chamado de “posição perversa”: ao mamar, o bebê procura satisfazer sua necessidade de alimento, bem como sua necessidade libidinal. Após, o bebê mama até que o seio seja exaurido. O amor libidinal, que pode destruir o seio, tem a característica da perversão: o outro é utilizado como mero instrumento para se obter o desejado.


Stoller (1985) foi, sem dúvida, o primeiro grande analista a tratar o tema da perversão, assim como o do sadomasoquismo e das transexualidades, fora da moral sexual existente, mas, sobretudo, fora da “moral” presente no interior da própria psicanálise. Para Stoller, a hostilidade em relação ao objeto é a característica central do ato perverso. Para o autor, a palavra perversão serve para que indivíduos “normais” projetem sobre os outros suas próprias tendências perversas, elegendo-os como bodes expiatórios.


Stoller (1985) fala de uma necessidade social da perversão, a fim de se manter a moral sexual social. Trata-se de uma categoria na qual os desviantes se enquadram.


Enfim, para Stoller, a perversão é uma fantasia posta em ato por meio de uma estrutura defensiva construída gradualmente por anos, com a finalidade de preservar o prazer erótico (STOLLER, [1975] 2018). A cena perversa não visaria apenas à recusa da castração, mas, sobretudo, à manutenção da identidade sexual ameaçada, através de uma necessidade de fazer mal (STOLLER, 1984). O ato perverso se constitui como uma forma erótica do ódio, pois existe o desejo de ferir ou danificar o outro: trata-se de uma fantasia atuada. Uma fantasia de vingança, cuja função é a de transformar um trauma infantil em um triunfo adulto: um triunfo momentâneo da castração (CONÇALVES & CECCARELLI, 2020).


Para McDougall (1982), o teatro que o perverso monta cuidadosamente é uma forma ritual, no qual o enredo tenta negar, ad infinitum a existência da castração; uma intriga inconsciente que demonstraria o triunfo sobre a castração. Na verdade, a castração é um fantasma sempre à espreita do perverso.


A castração é o mote de toda a criação perversa, o que explica o caráter compulsivo de busca sexual do perverso. Em sua constante tentativa de negar a realidade, o perverso se coloca em uma luta sem trégua para se proteger da angústia, tentando negá-la, escondê-la. (McDOUGALL, 1997)


Para McDougall (1972, 1997), enfim, as manifestações da sexualidade, por mais insólitas que possam parecer, são sempre únicas e traduzem soluções aos conflitos - reais e/ou imaginários - presentes desde o início da vida. A análise destas manifestações mostra que estas "invenções" são, no fundo, rearranjos de velhos conflitos que, quando criança, o sujeito teve que enfrentar na constituição de sua psicossexualidade. Aqui, o conceito de neo-sexualidade é muito útil, pois descreve soluções psíquicas inovadoras resultados de arranjos libidinais, verdadeiro teatro erótico, destinado a proteger a criança contra uma angústia de castração esmagadora.


Segundo Paul-Claude Recamier (2012), a perversão é uma estratégia de defesa bastante usada; uma forma de sobrevivência.


Na teoria lacaniana, é a posição do sujeito frente à castração que determina a estrutura do diagnóstico. A perversão é marcada pela recusa/renegação ou desmentido (Verleugnung) da representação da castração simbólica no inconsciente (LACAN, 1988). Contudo, para Van Haute (2017) falar em estrutura daria à psicanálise uma leitura normativa, que nada teria a ver com as posições freudianas.


Observa-se que, embora a referência à castração seja central em vários dos autores citados, ela recebe leituras diferentes segundo à especificidade da clínica de cada um deste teóricos sem que, a começar pelo próprio Freud, ela seja, a priori, um empecilho para que o processo analítico ocorra.


Seja como for, e a partir do que foi dito sobre as posições teórico-clínicas a respeito das perversões, acredito que as observações de Robert Barande (1980) merecem um momento de reflexão. Para Barande, a figura do perverso é incompatível com a psicanálise freudiana, pois “não existe nenhum lugar de discurso donde o psicanalista possa falar sobre a ‘perversão’ sem que se negue enquanto psicanalista” (BARANDE, 1980, p. 160). Isto pode ser observado em passagens tais como: as perversões são “as forças motivadoras dos sintomas neuróticos” (FREUD, [1905] 1976, p. 246); a análise da disposição artística revela uma “mistura em todas as proporções, de eficiência, perversão e neurose” (FREUD, [1905] 1976, p. 246). Isto significa que toda organização neurótico/normal, o que inclui a normopatia (FERRAZ, 2000, 2002), é composta de traços, em pulsações energéticas variadas, da sexualidade polimorficamente perversa da infância.


Segundo Barande, a teoria das perversões releva da clínica psiquiátrica, da medicina legal ou, enfim, de um discurso moralizador (Ibid., p. 170), mas não da psicanálise tal como apresentada por Freud. Ainda segundo o autor, o campo semântico do termo perversão tem por base uma “moral que nada evoluiu desde a época em que, precisamente, se podia acusar Freud de perversão na sua condução das curas e na sua teoria” (Ibid., p. 171). Enfim, parece existir uma incongruência entre o que Freud diz da satisfação pulsional, sem objeto fixo, e o que os pós-freudianos fizeram com ela. Junta-se a isso: “a preocupação de ‘controle’ e ‘supervisão’ no recrutamento de futuros analistas é motivada pela necessidade de detectar... os perversos!” (Ibid., p. 171).



A escuta do perverso


Em trabalhos anteriores, tive a oportunidade de falar um pouco sobre A escuta do perverso (CECCARELLI, 2011; REIS SANTOS & CECCARELLI, 2010). Gostaria de retomar alguns pontos que me parecem importantes.


Segundo Freud ([1908] 2020, p. 86), “A conduta sexual de um ser humano é frequentemente exemplar para todas as outras maneiras habituais em relação ao mundo” (grifado no texto). Isso significa que o perverso age dentro de sua forma particular, muitas vezes sentida como agressiva, de modo geral na vida, e não, particularmente, no trabalho analítico. Muitos se recusam a receber perversos por sentirem – contratransferecialmente – que os ataques do perverso que, não raro, paralisam o analista, é dirigido especificamente a ele, sobretudo quando são manifestados de forma desdenhosa em relação ao seu trabalho, a perda de tempo, o sentimento que não há melhora. Alguns sustentam, ainda, que não existiria sofrimento no perverso!


Muitas vezes, a maneira como o analista reage aos restos não analisáveis de sua própria sexualidade perverso-polimorfa, o leva a dar respostas perversas, devido ao poder que a transferência lhe confere (CECCARELLI, 2004).


Ter medo de reconhecer, em si mesmo, os traços do perverso polimorfo que fomos, seria negar a condição necessária e fundamental para exercermos nossa profissão de analistas, cujos pressupostos repousam, essencialmente, sobre as vicissitudes e a perenidade da polimorfia da sexualidade infantil, sempre pronta a fazer irrupções em momentos imprevisíveis, o que inclui nossa atividade clínica.


O analista deve ter, também, o investimento necessário para seguir as regressões destes sujeitos pela tortuosa e monótona trilha da sexualidade pré-genital até os pontos de fixação da libido. Quando estamos lidando com dinâmicas perversas, não podemos nos esquecer que a matéria bruta de nosso trabalho são as fixações libidinais pré-genitais, que implicam relações narcísicas, em um período no qual as relações de objeto estão ainda se constituindo.


Se mantivermos a ética da escuta, ouvimos um sujeito que, em sua tentativa para sobreviver psiquicamente, lança mão, não sem dor e angústia, da onipotência infantil própria do período pré-genital, e do arsenal defensivo adquirido na infância, para construir uma forma de sexualidade (REIS SANTOS & CECCARELLI, 2009).


Neste sentido, por mais chocado que o analista se sinta frente ao relato do perverso, ele deve tentar manter a neutralidade de escuta. Além disso, deveria, também, “evitar deixar-se picar pela curiosidade, por mais extraordinário ou inverossímil que possa parecer o que escuta” (POMMIER, 1998, p. 448).


Pommier (1998) sugere que o analista se atente para a posição do sujeito no discurso. Tal posição teria a ver com o sujeito em relação à pulsão: “é ela que o leva a agir anonimamente, sem saber quem é – contrariamente ao que se produz na neurose, onde o sujeito age sem saber o que faz” (POMMIER, 1998, p. 472).


Do meu ponto de vista, uma das dificuldades maiores de escuta das dinâmicas pulsionais perversas se deve ao fato destas manifestações da sexualidade serem bem próximas dos conteúdos reprimidos do analista. A partir daí, tenho por hipótese que assim como a neurose é o retorno do recalcado, a perversão é o retorno do reprimido. [2]. Apresento esta hipótese tendo por base um dos textos que Freud fala de maneira mais clara sobre os destinos perversos da pulsão - Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna. Neste texto fundamental para a compreensão dos destinos pulsionais a partir do trabalho de cultura (Kulturarbeit), o termo em alemão empregado por Freud ao longo do texto é repressão (Unterdrückung) das pulsões (e não recalque [Verdrängung]). Isso significa que quanto mais repressora for a sociedade, mais seus membros recorrerão à soluções perversas para dar vazão as pulsões.


Gostaria de terminar com uma referência de Joyce McDougall que, há anos, me serve de baliza para o meu trabalho clínico. Logo no início do capítulo 8 – O psicossoma e a psicanálise – do livro Em defesa de uma certa anormalidade (McDOUGALL, 1983), lemos: Face à dor psíquica, às divisões internas, aos traumatismos universais e pessoais que a vida inevitavelmente provoca, o homem é capaz de criar uma neurose, uma psicose, um escudo caracterial, uma perversão sexual, sonhos, obras de arte – e doenças psicossomáticas. Artesão de si mesmo, tem poucas possibilidades de modificar a forma de suas criações psíquicas, essa estrutura que o ajuda a manter não somente o equilíbrio da economia pulsional, mas também o sentimento de ter uma identidade. (McDOUGALL, 1983, p. 133).


A angústia é a mãe da invenção no teatro psíquico

Joyce McDougall


[1] Nas línguas latinas, o termo “perversão” remete a: virar ao avesso, transtornar, perturbar, estragar, derrubar, devastar, tomar o caminho contrário, errado.


[2] O texto freudiano sugere uma distinção tópica entre o recalque e a repressão: o recalque operaria entre os sistemas Pcs/Ics, e a repressão, espécie de segunda censura, entre o Cs/Pcs, sendo as motivações morais as principais responsáveis pela repressão. Em uma nota na Interpretação dos Sonhos, Freud (1900, p. 645, nota 1) esclarece: “Omiti declarar se atribuo significados diferentes às expressões “reprimido” (unterdrückt) e “recalcado” (verdrängt). Deveria ser claro, contudo, que o último dá mais ênfase que o primeiro ao fato de sua ligação com o inconsciente”.


 

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Sobre o autor:

Paulo é graduado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1983). Doutor pela Université de Paris VII - Université Denis Diderot (1995), e pós-doutor (Paris VII - 2009). Professor e coordenador de programas de especialização e formações livres no Instituto ESPE. Professor visitante convidado pela Université de Bretagne Occidentale - Brest, França - nos cursos de master 1 e master 2. Chercheur associé à l'Université Paris 7 Denis-Diderot. Professor credenciado a dirigir pesquisas de pós-graduação e pesquisador do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental da Universidade Federal do Pará, Belém. Pesquisador Associado do LIPIS (PUC-RJ). Membro da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia da 4ª Região ? Minas Gerais/CRP-04. Membro de Programa Antártico Brasileiro. Diretor científico da Clínica Ampliada de Saúde Mental (CASM: https://casm.bhz.br). Fundador e Coordenador do Instituto Mineiro de Sexualidade (IMSEX: www.imsex.com.br) Pesquisador do CNPq (Bolsa de Produtividade em Pesquisa (PQ) - Processo N: 312687/2013-3).



Referências Bibliográficas


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VAN HAUTE Lacan encontra Freud? Reflexões patoanalíticas sobre o estatuto das perversões na metapsicologia lacaniana.

WINNICOTT, D.W. (1951) Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In: Textos selecionados da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978.


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