Texto escrito por Tiago Ravanello, Psicanalista e pesquisador. Doutor e Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A história da psicanálise possui muitas nuances, certamente não se trata de um desenvolvimento em linha reta. Assim foi do ponto de vista da construção da teoria psicanalítica, mas, sobretudo, esse foi o direcionamento da constituição do método clínico. Diga-se de passagem, duas marcas do estilo de produção teórica de Freud merecem destaque: a primeira é a sua honestidade enquanto pesquisador. Sem esconder maus resultados ou excessos de vaidade que o levariam a insistir no já escrito como se fosse verdade cabal, tratava-se sobretudo de um pesquisador íntegro, disposto a dividir com seus leitores as encruzilhadas e os becos sem saída que demandavam mudanças de rota. O segundo ponto tem a ver com a posição assumida por Freud, ou seja, o ângulo através do qual ele aborda os problemas de pesquisa: ao fazer coincidir clínica e pesquisa, investigação e método de intervenção, Freud produz um campo de ciência que demanda uma não antecipação em relação às questões de interesse. A psicanálise não surge na escrivaninha de Freud, tampouco ela se encerra na poltrona em frente ao divã, pois faz-se necessário e fundamental o trânsito da clínica à escrita e dos escritos à clínica. É nesse sentido que o psicanalista Marco Antônio Coutinho Jorge destaca a clínica psicanalítica como o laboratório do analista, em um brilhante desdobramento de sua obra sobre os fundamentos da psicanálise (JORGE, 2024). Deste modo, a produção conceitual de Freud está intimamente ligada aos desafios colocados pela experiência analítica, numa constante reflexão a respeito do caráter inventivo dos primórdios da técnica. Isso, por si só, já nos serve a uma primeira questão a se considerar quando falamos do conceito de transferência: ele é diretamente dependente da concepção de “cena analítica”. Ora, sempre que falamos de uma análise devemos ter em mente que estamos tratando de uma experiência altamente interativa. A maneira como nomeamos nossas experiências, o contexto no qual as vivemos, a possibilidade ou não de falarmos sobre elas, nossa possibilidade ou impossibilidade de acesso e recordação e, o que diz respeito mais diretamente ao conceito de transferência, a quem as endereçamos modifica dinamicamente o papel que elas vão exercer em nossas vidas.
Aqui chegamos ao ponto crucial do conceito de transferência:
Contrariamente às exigências contemporâneas de um reducionismo cientificista brega e clichê, a criação dos diferentes dispositivos clínicos na época de Freud haviam compreendido que a presença do profissional e as relações exercidas no contexto clínico alteram radicalmente os resultados. Quando se trata de sofrimento ou sintoma psíquico não podemos restringir o a abrangência da experiência apenas à realização protocolar da técnica tal como disposta nos manuais, o analista (ou qualquer outro tipo de atendimento e/ou posição assumida profissionalmente) está efetivamente presente na cena e suas ações repercutem ativamente nos modos de experimentação do processo clínico. Como nos diz Lacan: um analista também paga para estar lá na análise: paga com seu corpo, sua presença e suas palavras. O método desenvolvido por Freud fará da transferência o motor da análise, mas também, segundo a reformulação lacaniana, a transferência é um lugar que demanda um exercício ético de constante reflexão quanto à posição do analista.
Retomando sua história, temos que o interesse despertado nos efeitos da figura do profissional agente da ação terapêutica (poderíamos designar aqui de forma genérica como “terapeuta”, posto que estamos falando dos efeitos do que reside na origem grega therapeúo, prestar cuidado, tratar) não era um interesse singular ou exclusivo de Freud, mas uma questão de ordem na busca pelo desenvolvimento de diferentes formas clínicas no século XIX e primeira metade do século XX. Nesse sentido, os autores que exerceram influência direta sobre o pensamento freudiano voltavam-se aos estudos das experiências de Franz Anton Mesmer, ainda no século XVIII sobre o magnetismo animal. Destas tentativas de experimentação surgiram duas linhas gerais que vão determinar os interesses científicos prioritários dos grandes centros europeus da época freudiana e anterior a ela: a hipnose como meio terapêutico e a concepção de energia como causalidade dos fenômenos psíquicos. Averiguando o interesse de Freud sobre a hipnose, vemos que o caminho é marcado pela relação entre dois pesquisadores e sua abordagem dos efeitos terapêuticos da influência do profissional sobre o paciente: Jean-Martin Charcot e Hippolyte Bernheim. É bem conhecida a história, diversas vezes contada por Freud em textos como A história do movimento psicanalítico, Cinco lições de psicanálise e Um estudo auto-biográfico, da influência direta de Charcot sobre seu pensamento. A hipnose serviu nos primórdios da construção do método à justificação do conceito de inconsciente, a partir da tese da divisão psíquica e do efeito causal de memórias que não eram acessíveis à consciência (“os histéricos sofrem de reminiscências”), mas também, destacando uma espécie de poder passível de ser exercido pelo terapeuta em relação ao seu paciente. Hipnotizadas por Charcot, suas pacientes tinham supensões imediatas de sintomas ou os trocavam entre si, aparentemente entregues ao seu saber e ao seu lugar de mestria. Por outro lado, em sua curta passagem pelo sul da França, o jovem Freud teve contato com a abordagem terapêutica de Bernheim, supostamente mais simples por evitar o uso da hipnose e tentar extrair dela sua função essencial: a sugestão. A partir do primeiro, Freud nos apresenta o método catártico, do segundo, o método sugestivo com o leve pressionar da mão sobre a testa que, ao conferir à fala do analista o poder de autoridade, sugestionava o retorno preciso da lembrança outrora esquecida. Ambos os caminhos se mostraram limitados e, em certo sentido, equivocados. Mas, por outro lado, foram necessários para o destaque da relação terapêutica e, a partir de seu estudo, a delimitação da transferência como o móbil da análise.
Faz-se necessário destacar que a transferência não é uma forma nem de hipnose
Muito menos de sugestão, mas ao contrário disso, a possibilidade de renunciarmos a ambas. Assim, entendemos por transferência a instauração de um circuito afetivo que implica diretamente numa tomada de posição ética. Classicamente, entendemos por transferência a sobreposição de afetos que um analisando ou analisanda faz em relação à figura do analista, dirigindo a ele inconscientemente a intensidade de experiências as quais a figura do ou da analista será associada configurando um tipo específico de experiência amorosa. Justamente por ser uma “cura pela fala” ela demanda um destinatário, e este torna-se um alvo de um afeto que se configura como amor. Desta feita, a cura pela fala acaba tornando-se também uma cura pelo amor.
Atravessando a leitura pelo retorno que Lacan emprega à teoria freudiana, temos que esse afeto é especialmente um amor destinado ao saber, o que permite a Lacan reler o conceito freudiano de transferência como o amor destinado a um lugar de suposto saber. Desta máxima, todos os termos são cuidadosamente colocados e merecem destaque um a um. Por ser amor, a experiência transferencial está súbdita aos circuitos da demanda, motivo pelo qual ela costumeiramente se confunde com as queixas de um analisando, com pedidos de suplência ou podem ser abarcados pela dialética da mestria e dominação. “Diga-me o que fazer”, “o que você acha que eu sou” ou “afinal de contas o que eu tenho” são mais do que meras demandas de nomeação, são súplicas amorosas destinadas aquele ou àquela que detém o poder conferido pela autoridade do saber. Muitos analisandos e analisandas relatam configurarem a cena analítica antes mesmo dela chegar a acontecer, ou ainda, que iniciaram seus processos de análise em diálogos internos nos quais a figura do ou da analista vai sendo gestada através da fantasia. “Prefiro um analista homem”, “tem coisas que só conseguiria dizer a uma mulher”, “preciso da indicação de um ou uma analista com larga carreira acadêmica”, “você poderia me indicar um analista que fosse como você?” Frases como essa apontam para os efeitos da transferência antes mesmo da presença do analista. E é assim que se configura aquele frio na barriga que invade os analisandos e analisandas antes do primeiro contato ou da primeira sessão, muitas vezes pronunciado como um pedido delicado de cuidado: “eu nunca fiz análise antes, não sei como será, você poderia me conduzir nesse processo?”
Por ser destinado temos que a transferência constitui um circuito, ela veicula algo que não necessariamente condiz à própria relação ou que tenha sido construído legitimamente nela. E muito do afeto destinado ao ou à analista de fato não condiz com a sua pessoa, suas características ou suas questões. E não há nada de equivocado em destinar a essa figura algo que não lhe concerne, pois a função da transferência é justamente essa: a de atualizar o inconsciente na cena analítica. Justamente por isso que a experiência analítica não se reduz à rememoração. Quando solicitamos ao analisando ou analisanda que associe livremente, nossa intenção segue o vetor traçado desde Freud de que o caminho da clínica vai de recordar, passando obrigatoriamente por repetir para, se o objetivo puder ser concluído, enfim elaborar. Mas para que esse processo se realize, torna-se fundamental que o analista entenda que sua função de destinatário não concerne ao seu ser, mas ao seu lugar. E sustentar essa posição talvez seja o maior desafio para os e as jovens ingressantes na prática analítica. Os afetos endereçados a esse lugar podem facilmente tirar o ou a analista de sua posição, e assim entender que a raiva que lhe foi endereçada teve por causa um descuido ou erro técnico, que o amor ou a sedução pode ter surgido de algo que efetivamente lhe concerne ou, ainda, que tenha um aspecto de retorno dialético que o faça imprimir na cena o seu próprio afeto ou seus endereçamentos. É nesse lugar que o ou a analista, tomado pela pena, pelo encanto, pelo sentimento de ajuda samaritana ou pelos interesses comuns sustentados pela identificação tomba de sua função, parte para a tentativa de resolução de problemas práticos da vida e se esquece daquilo que confere a razão de estar ali: a escuta analítica. O desejo do analista é, sobretudo, o desejo de que a análise aconteça e, por sua vez, um antídoto para a contratransferência. Esse é um ponto muito sensível tanto da análise do ou da analista (“o que nesse caso tem me convocado num lugar que não o de analista?”) quanto das supervisões (“preciso de auxílio para escutar o que está atravessando esse caso de modo a me derrubar do lugar de analista”).
Dentre tantas dificuldades inerentes à prática analítica (infinitamente bela, mas que cobra um alto preço aqueles que a exercem), uma delas sem dúvida alguma é a de fazer valer o caráter de suposição de seu saber. Se entendermos isso pela lógica dos quatro discursos proposta por Lacan em seu seminário 17 (1969-1970/1992), sustentar o lugar de saber faria o analista cair no discurso universitário, ou seja, assumir que seu lugar se esvazia enquanto o agente de uma técnica que supõe a existência de um mestre para além de si. Isso faz despertar o interesse na teoria psicanalítica, na vida e obra de autores como Freud e Lacan, mas não faz uma análise. Do mesmo modo, se o ou a analista resolve encarnar em si a autoridade do dito, fazendo coincidir seu ser como o ato da enunciação ou produção do saber como o início da cadeia associativa (o S1, significante-mestre), o ou a analista recairá no discurso da mestria, produzindo efeitos sugestivos que levam à dominação, à influência, à criação de seguidores, mas não a uma análise. Em seu ato analítico, o saber não é colocado à prova porque ele não se endereça à realidade dos fatos ou à resolução das problemáticas colocadas em cena, mas ao encontro de nossa condição de sujeitos em nossos ditos. Seja como pontuação, escanção, corte, silêncio, eco, aturdimento, o ato analítico faz com que o ou a analisanda escute a si mesmo, e isso não é pouca coisa em tempos de priorização da imagem e apagamento de nossa condição de sujeitos.
Por fim, mas não menos importante, há um saber envolvido no processo transferencial
É a ele que o amor se destina, mas ele não pode se tornar o foco da análise, por isso o trato cuidadoso para que ele seja suposto. Não é incomum que analisandos e analisandas, sobretudo os neuróticos, tentem transformar a experiência analítica numa espécie de quiz show, cujo prêmio seria a pressuposta descoberta do inconsciente velado no impossível dos dilemas e dos ardis (na neurose obsessiva) ou da revelação de si que, ao se mostrar, tornar-se-á inconsistente e o motivo principal da derrubada do mestre antes demandado (na neurose histérica). Não é disso que se trata. Mas mesmo a pergunta mais boba, aquela que Lacan carinhosamente chama de não-tão-besta, tem por fundamento o cálculo do método. Trata-se de uma pergunta passível de ser feita por um ou uma analista? Se questionar isso, sigo no mantendo o meu lugar? Justamente pelo ato analítico comportar em si os efeitos da conjunção do tripé (estudo, análise pessoal e atendimento supervisionado) que ele presentifica em termos éticos o saber do analista. E nisso, vejamos que o estudo corresponde a uma parcela muito significativa, mas não a única. Não se faz analista apenas na escrivaninha, não é só de texto que se faz uma análise. Se por um lado, a face do saber não pode ser relegada sob pena de transformar a análise numa prática leiga e meramente intuitiva, por outro, trata-se de uma dimensão ética incontornável que esse saber se atualize em termos da formação integral. Ou, como dizia Lacan, um analista só pode levar uma análise até onde foi a sua.
Referências
Beividas, W. & Ravanello, T. (2009). Linguagem como alternativa ao aspecto quantitativo em psicanálise.
FREUD, S. (1910). A História do Movimento Psicanalítico.
FREUD, S. (1909). Cinco Lições de Psicanálise.
FREUD, S. (1925). Um Estudo Auto-biográfico.
HACKING, I. (2000a). The Social Construction of What?
HACKING, I. (2000b). Múltipla Personalidade e a Ciência.
LACAN, J. (1969-1970). Seminário 17 - O Avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
Jorge, M. A. C. (2022). Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan – Vol. 4: O laboratório do analista.
Sobre Tiago Ravanello: Psicanalista e pesquisador. Doutor e Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo parte de seu doutorado sido realizada como bolsista do Centre de Sciences du Langage da Université de Paris - X - Nanterre pelo programa CAPES/PDEE. Realizou seu pós-doutorado em Psicologia/Psicanálise na Universidade de São Paulo (USP).
コメント