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Graduação de psicanálise: um problema com diversas nuances

Atualizado: 4 de nov.

Texto escrito por Tiago Ravanello, Psicanalista e pesquisador. Doutor e Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.



 

Dizia Lacan que a psicanálise é um campo que se perde, e que a nova entrada precisa ser refeito. Assim estudamos psicanálise, na maioria dos caminhos, repisando os passos de Freud: voltamos ao final do século XIX e revisitamos os impactos da moral sexual civilizada sobre os corpos femininos, somos levados a refletir sobre os efeitos das palavras em sofrimentos vividos como expressões corporais, vamos (re)descobrindo o pouco alcance da consciência e, paralelamente, também os limites das práticas sugestivas. Associação livre, posição do analista, transferência, ética do analista vão fazendo sentido ao mesmo tempo em que as teses iniciais sobre o inconsciente, recalque, pulsão, divisão do sujeito vão se assentando em nossa compreensão. E a escuta vai se moldando a isso: a arte da interpretação, a atenção flutuante como contrapeso à prática associativa, os sonhos, os chistes, os atos-falhos vão tomando forma em nossos ouvidos. Como se aprendêssemos a ouvir novamente, como um processo de descobertas renovado pela experiência. Mas qual experiência? Existe apenas uma? Podemos falar de uma trilha única? De um caminho obrigatório ou passível de ser apreendido numa grade curricular? Sendo professor em uma instituição de ensino superior há mais de 15 anos, acompanhando jovens em seus primeiros passos na teoria em um curso de graduação em psicologia, em seus primeiros atendimentos clínicos nos estágios supervisionados, ou ainda em aprofundamentos desse universo multifacetado em pesquisas de mestrado ou nos atendimentos da residência clínica, constato o óbvio: muitos caminhos levam à formação de um analista, mas também há descaminhos...


Feito esse prólogo, podemos passar a nos deter de forma mais minuciosa aos problemas levantados pelo surgimento, no Brasil, de propostas de formações universitárias para a psicanálise. Dito de outra forma, quais questões devem ser levantadas a partir do surgimento de faculdades ou graduações especificamente de psicanálise. Gostaria de propor abordarmos o tema por três possibilidades de análise: 1) a formação do analista; 2) a relação entre psicanálise e universidade; e 3) a relação entre psicanálise e cientificidade.


 

A formação do analista e o seu (des)lugar


Se é verdade que retomamos os passos de Freud em seu interesse pela experiência analítica, seria correto apontar que o surgimento da psicanálise não ocorreu no universo das pesquisas universitárias, mas ao preço de seu abandono. Remontando a história, temos que Freud de fato frequentou os laboratório de psicofísica de Ernest Brücke e de Ernest Mach, seguido do laboratório de pesquisas em psiquiatria de Theodor Meynert. É justamente por influência destes que Freud aceita a bolsa de pesquisa para buscar na França as novidades em termos teóricos e técnicos dos trabalhos de Jean-Martin Charcot (em Paris) e de Hippolyte Bernheim (em Nancy). O resultado dessa jornada investigativa é publicada como o relatório de pesquisa “Algumas considerações para um estudo comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas” (FREUD, 1888), no qual estão presentes de forma ainda germinal os princípios das concepções de quantidade de afeto, representação, conversão, divisão do psiquismo como princípio explicativos dos fenômenos histéricos. Mas a psicanálise não surge aí, mas ao preço de um certo desprendimento. Da universidade, Freud porta consigo os fundamentos de uma ciência da natureza (seus princípios explicativos, seu rigor metodológico e o raciocínio descritivo), mas fez-se necessário a exploração de novos rumos, mais especificamente, os da clínica, tal como lhe é apresentada por Joseph Breuer. Em resumo, Freud se forma pesquisador pela universidade, mas se faz psicanalista pela experiência clínica.


Uma vez estabelecidos os fundamentos de uma teoria do inconsciente e uma prática clínica decorrente de sua teorização, cujos principais passos seriam os dos “Estudos sobre Histeria” (1893), “A interpretação de sonhos” (1900), “Os chistes e suas relações com o inconsciente” (1900) e “Psicopatologia da vida quotidiana” (1901), Freud irá deter-se sobre o problema da formação de seus novos interlocutores na década seguinte, o que fica mais evidente a partir de seus “Artigos sobre técnica” (1911-1914). Entretanto, seu passo não foi o de retornar ao modelo da formação universitária, o que não seria de todo impossível considerando que Freud é contemporâneo ao nascimento da psicologia enquanto disciplina nas universidades. E, ainda, que o alcance da prática psicanalítica nos principais centros da Europa e sua entrada progressiva no território norte-americano somado à notoriedade de autor que lhe era imputada permitiria colocar-se em termos de pleitear a disciplinarização também da formação psicanalítica. Notoriamente, Freud toma outros rumos: a criação de uma escola/instituição psicanalítica e a defesa do tripé (a soma da análise pessoal, atendimento clínico supervisionado e estudos teóricos) como modelo formativo.


Vejamos que esse movimento duplo tem objetivos singulares e complementares: através do tripé buscava-se delimitar a especificidade do que uma análise coloca em jogo, enquanto que o surgimento da escola visava colocar constantemente em questão, e de forma dinâmica, os dispositivos atinentes à formação. Ao invés de engessar a “graduação” de um analista, de estipular de forma rígida e invariante os rumos a serem seguidos, de comprimir o necessário ao desenvolvimento de um saber analítico na grade de conteúdos de um programa hermético, Freud apostou num modelo que desse condições de transitar entre problemas clínicos, o enfrentamento das próprias questões inconscientes e os interesses particulares de investigação. Obviamente que esse é um processo que não se dá sem uma boa dose de mal-estar, o que demanda a criação de dispositivos de escuta que tensionem constantemente o processo, indagando avanços e recuos, relançando frequentemente a necessidade ética de alinhamento com a causa analítica.


No cerne dessa questão, como não poderia ser diferente, está a análise pessoal do analista ingressante. Se mudamos um pouquinho o ângulo de abordagem, seria conveniente questionar: uma análise pode ser curricularizada? Ela pode acompanhar as exigências formativas? Certamente que não, logo, não faria nenhum sentido afirmar que uma universidade (seja ela qual for, e aqui sem qualquer demérito em relação ao seu porte ou importância em nossa contemporaneidade) poderia em qualquer medida afirmar ter “formado” ou, ainda, “graduado” um psicanalista. Esse processo, que demanda obrigatoriamente o tipo de enfrentamento trágico de si mesmo que somente uma análise pode oferecer, não deveria ser nem opcional, nem fechado em quatro ou cinco anos (tempo comum das graduações nas universidades brasileiras). O risco de tal empreitada seria reduzir a figura da formação a do ensino, sem a devida discussão das implicações éticas de tal procedimento. Mas se uma universidade não pode exigir que seus alunos e alunas se submetam à experiência analítica, como poderia ela dar testemunho da integralização de um processo que é pensado como inexoravelmente ligado à análise? E se há possibilidades diversas de encaminhar uma formação em relação a seus procedimentos e, sobretudo, seus interesses teóricos, como uma grade curricular poderia aprisionar em si tal pluralidade de rumos? A resposta é simples: não poderia, ou, ao menos, não deveria.



 

A difícil relação entre psicanálise e universidade


Sendo a prática da psicanálise uma profissão não regulamentada no Brasil (e as discussões nesse sentido dão um bom mote para outro texto), não há nenhuma exigência formal para que o exercício seja realizado por profissionais de uma graduação específica. Obviamente, isso historicamente abriu margem para toda uma gama de apropriações muito indevidas do significante “psicanálise”. Desde a abertura de instituições sem nenhum lastro que sustente a razoabilidade de sua existência, passando por confusões de toda sorte (as mais notórias entre psicanálise e religião, lembrando sempre que a laicidade da psicanálise é uma condição sine qua non inegociável) até a assunção precoce e infundada de “profissionais” que atuam de forma intuitiva e, por vezes, contraditória com o método, de fato, há uma longa lista de descaminhos a se atravessar quando falamos dos processos de formação de um analista. Um capítulo à parte seria a má compreensão do dito icônico de Lacan segundo o qual um analista se autoriza desde si mesmo, sem levar em consideração que a frase era complementada pela função da escola: autorizar-se de si mesmo, e de “alguns outros”. Mesmo assim, a universidade não se configura como uma saída segura para evitar tais descaminhos, pois o problema não se restringe à falta de uniformidade nos procedimentos.


Quanto a isso, as formações universitárias não são imprescindíveis no caminho que leva a tornar-se psicanalista. Elas cumprem, em muitos sentidos, duas funções necessárias: a primeira de oferecer um ambiente seguro e razoável para os primeiros passos na área (o que tende a acontecer em graduações em psicologia, com disciplinas voltadas à história, epistemologia e noções básicas do método psicanalítico bem como em estágios supervisionados que permitem contatos iniciais com a experiência analítica e com o Real da clínica); a segunda, de formalizar caminhos para o estudo teórico (parte tão importante do tripé, que pode ser mais bem sistematizado em cursos de pós-graduação, tais como cursos de extensão, especializações, mestrados, doutorados e residências). Caminhos possíveis, mas não obrigatórios em sentido único. Para exemplificar, tive a sorte de conhecer, ao longo de minha trajetória no campo, psicanalistas advindos de diferentes cursos de graduação (psicologia, medicina, física, matemática, letras, linguística, filosofia, história, ciências sociais, direito, arquitetura e assim por diante). Para cada um deles e delas, desafios diferentes, somando obstáculos a serem superados, mas também virtudes advindas de modos de raciocínio típicos de seus portos de origem. E mesmo uma graduação em psicologia que, supostamente, deveria implicar em maior facilidade para o adentramento no campo, impõe problemáticas que demandam esforços, como saberes e práticas a serem deixados de lado. Entretanto, nenhum desses cursos propõem-se em nenhuma medida a atestar a formação de um analista. Uma universidade ou um instituto de ensino superior pode, de modo significativo e humilde, atestar apenas o percurso ao qual ele se propôs ser esteio: certifica-se um saber, um estudo, a conclusão de uma pesquisa ou um curso, nunca o término de uma formação analítica.


Por conclusão desse tópico, que poderia levar a um exame mais detido em outro momento, tem-se que as universidades e instituições de ensino podem ser muito úteis a uma parcela importantíssima da concretização do tripé da formação do/da analista, mas não podem buscar reduzir em suas matrizes uma experiência também fundada na sustentação de um não-saber, ou seja, uma prática derivada do inconsciente.


 

Psicanálise e cientificidade


Esse é um tópico muito sensível da discussão, e talvez ainda mais mal encaminhado do que os anteriores. Isso em função do peso de questões imaginárias que circundam o campo, fazendo com que argumentos repetidos, críticas batidas e acusações infundadas empurrem aspirantes sérios ao campo, em busca de caminhos formativos ideais, sejam empurrados para estratégias equivocadas de profissionalização. De maneira geral, a cientificidade da psicanálise é muito mal criticada, sendo reduzida a um conjunto de acusações muito precárias que giram em torno da falta de referências observacionais seguras para o inconsciente, mas também, de falta de objetividade do processo formativo. Isso permite que sejam tomadas como exemplo e fundamento crítico as práticas que estão completamente em desacordo com as exigências metodológicas para um caso. Contrariamente a isso, outras abordagens clínicas tendem a sustentar o imaginário de que títulos e formações universitárias seriam garantias da fidedignidade e confiabilidade de suas práticas. E não haveria dúvida de que um doutorado em ciências do comportamento serviria de fiança para que um analista do comportamento assevere sobre um tema. Ou ainda, que um especialista em terapia cognitivo-comportamental teria o domínio de método suficiente para replicar as técnicas teoricamente embasadas para determinados tipos de caso. Vejamos como em diferentes campos da clínica psi tem aumentado a recusa da parte de pacientes e/ou seus tutores de psicanalistas, arvorados no discurso de que “para determinado caso tem que ser uma abordagem científica”. Ora, sabemos que os estudos comparativos, em especial as pesquisas de Leichsenring e Rabung (2008), apontam para a larga efetividade das práticas psicanalíticas, mas o que está em questão não é a consideração das discussões nos meios científicos, mas uma política de mercado atroz que leva ao ataque de abordagens versus abordagens. A resposta a esse conjunto de ataques, não raramente, tem sido a busca por “mais títulos”, “mais diplomas” afim de assegurar por meio da força simbólica de instituições universitárias a confiabilidade no ato. Nesse caso, lembremos ao leitor e à leitora que uma prática clínica não é feita daqueles que a criticam, mas efetivamente daqueles que nela ficam a ponto de serem transformados pela dimensão de seu ato. Mas para que esse ato seja consistente, faz-se necessário, em primeiro lugar, compreender a necessidade permanente de formação que torna o processo contínuo, aberto e infinito. Em segundo lugar, o caráter ético que o reenvio constante do analista e da analista aos estudos, mas também, de colocar sua clínica no divã da supervisão e a si mesmo face ao enfrentamento de suas questões conscientes. Uma graduação pode prescindir desses diferentes níveis da análise, um psicanalista não.


 


Sobre Tiago Ravanello: Psicanalista e pesquisador. Doutor e Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo parte de seu doutorado sido realizada como bolsista do Centre de Sciences du Langage da Université de Paris - X - Nanterre pelo programa CAPES/PDEE. Realizou seu pós-doutorado em Psicologia/Psicanálise na Universidade de São Paulo (USP).  

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