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Foto do escritorDaniel Omar Perez

Por onde começar a ler Freud? Quais são os textos iniciais para entender a psicanálise?

Atualizado: 8 de mai. de 2023

Por onde começar? Essa é uma pergunta que a gente se faz quando pretende estudar a psicanálise. Por onde começar quando entramos numa biblioteca e vemos centenas, milhares, de livros? Quando decidimos nos dedicar a uma teoria, a uma disciplina ou a uma ciência?


Nessa matéria do Instituto ESPE, instituição de ensino e pesquisa dedicada à transmissão da psicanálise, falaremos sobre os textos de Sigmund Freud - o criador da psicanálise, em uma transcrição adaptada do episódio 3 do ESPEcast, podcast e plataforma de psicanálise e filosofia do Instituto ESPE, apresentado por Daniel Omar Perez. Disponível no Youtube e no Spotify.



Talvez o melhor modo de entrada na psicanálise seja fazendo a análise pessoal. A partir daí, podemos começar a estudar as coisas que têm a ver com nossos sintomas, com nossas questões, com nossas angústias, desejos, repressões... De qualquer forma, pode-se percorrer o caminho contrário. Pode-se dizer: “bom, eu não pretendo fazer psicanálise, pelo menos por enquanto, mas quero começar a ler psicanálise”. Nesse ponto, eu insistiria que o melhor caminho seria começar por aquilo que mais dói, por aquilo que nos faz sofrer, nos causa mal-estar e nos coloca em estado de angústia. Isto é, buscar na psicanálise os textos que têm a ver com aquilo que nos faz questão. Por isso que não há na psicanálise uma formação disciplinar passo a passo, uma formação que todo mundo a priori deveria fazer. O percurso de uma análise tem a ver com a elaboração das nossas próprias questões.


Os caminhos para estudar psicanálise – os caminhos de leitura e prática – são diversos, singulares. Quando vemos a obra de Freud já estabelecida, é possível tomar certa distância dela e reunir seus textos em diferentes grupos. Tais grupos podem ajudar a organizar as formas de aproximação dos textos psicanalíticos e, em particular, dos textos freudianos. [1]



I - Textos fundacionais da psicanálise


O primeiro grupo é formado pelos textos fundacionais da psicanálise. Chamo a atenção para cinco textos:


- Estudos sobre a histeria (escrito em coautoria com Joseph Breuer) (1895).

- A interpretação dos sonhos ([1899] 1900).

- Psicopatologia da vida cotidiana (1901).

- O chiste e sua relação com o inconsciente (1905).

- Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905).


Esses cinco textos fundacionais trazem os elementos iniciais. O primeiro texto, Estudos sobre a histeria, mostra os casos clínicos, descreve a situação sintomática e relata o encaminhamento e o desfecho de cada caso. A partir dele, temos notícia do que seriam os primórdios de um tratamento clínico que leva adiante um tipo de técnica para o acolhimento e o encaminhamento da neurose histérica.


O segundo texto, A interpretação dos sonhos, assim como o anterior, foi escrito nos últimos anos do século XIX, sendo impresso em 1899, com a data de 1900. No início, ele teve pouco sucesso em sua divulgação editorial, mas foi sendo republicado progressivamente com mudanças, que, hoje, são muito difíceis de identificar. De algum modo, esse foi o livro que divulgou a psicanálise, a obra que a apresentou para a sociedade. Por isso, Freud queria que, em 1900, A interpretação dos sonhos fosse uma certidão de nascimento da psicanálise. Nela, o autor nos oferece uma interpretação do sonho como realização do desejo. Ele não disse que o sonho é a realização do desejo. Também não disse que sonhamos com aquilo que desejamos, mas que realizamos o desejo na forma do sonho. Também existem os sonhos de angústia. Aí, teríamos outros tipos de questões. A interpretação dos sonhos nos dá a técnica interpretativa da psicanálise.


Psicopatologia da vida cotidiana é o terceiro texto que nos parece fundamental. Note-se o seu título: psicopatologia, mas da vida cotidiana. Isso quer dizer que não se trata de uma divisão entre o normal e o patológico. Trata-se, antes, de ver como determinados fenômenos que fazem emergir o inconsciente surgem na própria vida cotidiana. Nesse sentido, Freud nos apresenta os lapsos, os esquecimentos, a troca de nomes, enfim, tudo aquilo que rompe com o discurso consciente, racional e bem estruturado e faz emergir o inconsciente. Psicopatologia da vida cotidiana nos apresentaria a algo que se dá como o material do trabalho analítico, o material a ser analisado. O material do analista e do analisante não é o discurso racional, mas o ponto em que este fracassa. Não é o discurso consistente, mas onde ele falha.


Por esse motivo, está aqui também o quarto texto, o livro O chiste e sua relação com o inconsciente. Nessa obra, Freud interroga a estrutura do chiste e as suas condições de possibilidade. Do que nós rimos em um chiste? Poderíamos dizer, rapidamente, que rimos daquilo que recalcamos. Outra vez, o inconsciente aparece. Contudo, o chiste não é apenas isso. Esse livro, extenso e minucioso, nos faz compreender quais são as funções do chiste na psiquê humana, mas também nos mostra que este é um material do trabalho analítico.


O quinto texto, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, é como se fosse um outro pilar. De um lado, teríamos o material do analista e do analisante. Do outro, a teoria da sexualidade, a teoria que nos permite compreender como funciona o mecanismo psíquico para a satisfação (ou insatisfação) e para a realização (ou recalque) daquilo que desejamos.


Esse conjunto – estudos clínicos sobre a histeria, o material do trabalho analítico e a teoria da sexualidade – formam uma espécie de “tríade” de fundação da psicanálise. Por isso, esse grupo de textos poderia ser lido em uma espécie de diálogo de um com o outro.



II - Casos clínicos


Há um segundo grupo, que eu chamaria de casos clínicos. Ele é formado por:


- Análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) ([1901] 1905).

- Análise da fobia de um garoto de cinco anos (“O pequeno Hans”) (1909).

- Observações sobre um caso de neurose obsessiva (“O homem dos ratos”) (1909).

- Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“O caso Schreber”) ([1911] 1912).

- História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”) (1918).


Nesses cinco casos (Dora, Hans, o homem dos ratos, Schreber e o homem dos lobos), vemos como os elementos dos textos fundacionais atuam nas histórias clínicas, nas quais teríamos a neurose histérica, a fobia, a neurose obsessiva e a paranoia (a psicose).


Essas histórias clínicas nos relatam um caso, uma queixa, um sintoma, apresentando-nos ao modo com o qual Freud acolhe tais casos e os encaminha para um desfecho, partindo do que mais tarde chamaria de metapsicologia.



III - Textos didático-pedagógicos


O terceiro grupo de textos se refere à história da psicanálise. Poderíamos nomeá-los de textos didático-pedagógicos de Sigmund Freud. Neles, vemos a apresentação da teoria de um modo didático tanto para o público geral quanto para especialistas. Há, aqui, uma série de textos que gostaria de mencionar:


- Psicoterapia (1905).

- Conferências introdutórias à psicanálise (1916-1917).

- Novas conferências introdutórias à psicanálise (1933).

- Há um pequeno texto de 1923-1924 que se chama “Resumo da psicanálise”; em 1925, está a Autobiografia de Freud, que não poderia ser outra coisa que uma história da psicanálise.

- “Psicanálise” e “Teoria da libido” (Dois verbetes para um dicionário de sexologia) (1923).

- Psicanálise (1926).

- A questão da análise leiga: diálogo com um interlocutor imparcial (1926).

- Compêndio da Psicanálise, escrito aparentemente inacabado de 1938, publicado em 1940, depois da morte de Freud.


Incluiria ainda Contribuição à história do movimento psicanalítico (1914) para completar o grupo de textos didático-pedagógicos de introdução à psicanálise e, ao mesmo tempo, da história do movimento psicanalítico em seus primórdios.

Assim, quando procuramos saber o que é a psicanálise em termos gerais, não precisamos buscar um manual escrito a posteriori. Em vários momentos de sua vida, o próprio Freud dedicou tempo e esforço para explicar o que era a psicanálise em seus elementos fundamentais.



IV - Ensaios de metapsicologia


O quarto grupo pode ser chamado de ensaios de metapsicologia, os escritos técnicos de Freud.


- Introdução ao narcisismo (1914).

- A pulsão e seus destinos (1915).

- A repressão (1915).

- O inconsciente (1915).

- Luto e melancolia ([1915] 1917).[2]


Esses são alguns dos textos do que se chamou a metapsicologia. Freud acreditava que morreria naquela época. Por isso, pensou que deveria transmitir as bases teóricas por meio desses ensaios. Acrescentaria alguns posteriores, que são fundamentais para pensarmos aquilo que foi acrescentado à primeira tópica, à primeira tentativa de metapsicologia.


- “Batem numa criança”: contribuição ao conhecimento da gênese das perversões sexuais (1919).[3]

- O inquietante (1919).[4]

- Além do princípio do prazer (1920), momento em que passamos para a segunda tópica.

- O Eu e o ID (1923).

- Inibição, sintoma e angústia (1926).


Esse quarto grupo, que eu chamaria de textos técnicos, metapsicológicos, nos apresentam os mecanismos do aparelho psíquico da primeira e da segunda tópica, que nos permitem acolher a experiência da análise de um caso clínico.



V - Textos culturais ou políticos


Por fim, o quinto grupo de textos é formado pelos textos culturais ou políticos de Sigmund Freud. Em Psicologia das massas e análise do eu, Freud defendeu o princípio de que a psicanálise não é uma psicologia do indivíduo, por um lado, e uma psicologia da sociedade, por outro, mas que a análise de um caso clínico é sempre, ao mesmo tempo, individual e social.


Nesse grupo de textos culturais ou políticos, encontramos:


- Totem e tabu: algumas concordâncias entre a vida psíquica dos homens primitivos e dos neuróticos (1912-1913).

- Psicologia das massas e análise do eu (1921).

- O futuro de uma ilusão (1927).

- O mal-estar na civilização (1930).

- Moisés e o monoteísmo: três ensaios ([1934-1938] 1939).


Nessa série, vemos a sua preocupação em trabalhar com os elementos da metapsicologia, da primeira e da segunda tópica, para analisar fenômenos políticos, sociais e culturais, uma vez que esses fenômenos tanto produzem posições de sujeito quanto determinam os sintomas.



VI - Outras indicações


Esses cinco grupos nos introduziriam à leitura da obra de Freud. Além deles, podemos ler sua obra cronologicamente, vendo, por exemplo, como Freud começou o seu percurso. Nesse caso, deveríamos começar com alguns escritos não incluídos aqui.


Inicialmente, a obra de Freud apresenta um conjunto de cartas (há milhares delas que ainda não editadas). Temos ainda as publicações pré-psicanalíticas, como o estudo Sobre a concepção das afasias (1981), o Projeto para uma psicologia científica, conhecido também como Projeto de uma psicologia para neurologista [5], além de verbetes de dicionário, a exemplo de Histeria (1888). De fato, ele entendia que a psicanálise era uma técnica para tratar as neuroses histéricas. Foi apenas mais tarde que descobriu que a psicanálise poderia servir para trabalhar com as neuroses obsessivas. A partir daí, ele avançou nos casos clínicos de obsessão.


Grande parte dos pesquisadores afirma que os primeiros textos de Freud já apresentam os principais elementos que ele desenvolveria em seus escritos, pelo menos, até 1920 (isto é, na primeira tópica). Esse seria, portanto, um modo de trabalho: começar pelos textos da origem da psicanálise – as cartas, manuscritos e rascunhos dirigidos a Wilhelm Fliess [6] -, e, a partir disso, tentar avançar na primeira tópica tanto com os textos fundacionais quanto com os metapsicológicos. Alguns pesquisadores entendem que, depois disso, Freud dá uma virada substancial: inventa uma segunda tópica e uma outra teoria das pulsões, abrindo o jogo da teoria psicanalítica de outra forma. Nesse sentido, proporia trabalhar com os textos da segunda tópica como outro modo de entrada, outra versão para a pergunta “por onde começar?”



Versões da obra de Sigmund Freud


A) Obras completas de Sigmund Freud. Coleção em 20 volumes publicada pela Companhia das Letras, sob a coordenação de Paulo César de Souza. Trata-se da primeira versão das Obras Completas, em língua portuguesa, diretamente traduzidas do alemão e dispostas cronologicamente:


1. Textos pré-psicanalíticos (1886-1899).*

2. Estudos sobre a histeria (1893-1895).

3. Primeiros escritos psicanalíticos (1893-1899).*

4. A interpretação dos sonhos (1900).

5. Psicopatologia da vida cotidiana e Sobre os sonhos (1901).

6. Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade, Análise fragmentária de uma histeria (“o caso Dora”) e outros textos (1901-1905).

7. O chiste e sua relação com o inconsciente (1905).

8. O delírio e os sonhos na Gradiva, análise da fobia de um garoto de cinco anos e outros textos (1906-1909).

9. Observações sobre um caso de neurose obsessiva (“o homem dos ratos”), Uma recordação de Infância de Leonardo da Vinci e outros textos (1909-1910).

10. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“o caso Schreber”), artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913).

11. Totem e Tabu, Contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1913-1914).

12. Introdução ao narcisismo, Ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916).

13. Conferências introdutórias à psicanálise (1915-1917).

14. História de uma neurose infantil (“o homem dos lobos”), Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920).

15. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923).

16. O Eu e o Id, “Autobiografia” e outros textos (1923-1925).

17. Inibição, sintoma e angústia, O futuro de uma ilusão e outros textos (1926-1929).

18. O mal-estar na civilização, Novas conferências introdutórias e outros textos (1930-1936).

19. Moisés e o monoteísmo, Compêndio de psicanálise e outros textos (1937-1939)

20. Índices e Bibliografia.*


B) Obras incompletas de Sigmund Freud, coleção dividida em volumes temáticos e em volumes monográficos, publicada pela Autêntica Editora, sob a coordenação de Gilson Iannini e Pedro Heliodoro Tavares. Essa série, em processo de edição, pretende oferecer uma nova tradução do alemão e uma nova forma de organizar e apresentar os textos deste autor.


B.1 - Volumes temáticos:

1. Psicanálise.*

2. Fundamentos da clínica psicanalítica (2017).

3. Conceitos fundamentais da psicanálise.*

4. Sonhos, sintomas e atos falhos.*

5. Histórias clínicas (2022).

6. Histeria, obsessão e outras neuroses.*

7. Neurose, psicose, perversão (2016).

8. Arte, literatura e os artistas (2015).

9. Amor, sexualidade e feminilidade (2018).

10. Cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros escritos (2020).


B. 2 - Volumes monográficos publicados:

A pulsão e seus destinos [edição bilíngue] (2013).

Sobre a concepção das afasias (2013).

Compêndio de psicanálise e outros escritos inacabados (2014).

O infamiliar [Das Unheimliche] [edição bilíngue] (2019).

Além do princípio do prazer [edição bilíngue] (2020).


C) Edição Standard Brasileira das obras psicológicas de Freud. Obra completa de publicada pela Imago, organizada em 24 volumes a partir da versão inglesa estabelecida por James Strachey.


D) Obras completas de Sigmund Freud: Ordenamiento, comentarios y notas de James Strachey con la colaboración de Anna Freud. Versão castelhana das obras completas diretamente traduzidas do alemão e publicada em 24 volumes pela Amorrortu.


E) A edição inglesa (Complete Works) e a alemã (Gessammelte Werke) podem ser consultadas através do seguinte link: <http://staferla.free.fr/Freud/freud.htm>.


Além das traduções citadas, o leitor poderá encontrar diversos títulos de Freud diretamente traduzidos do alemão e lançados em formato de bolso pela LP&M.



 

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Não deixe de conferir os programas de pós-graduação, atividades, cursos livres, seminários e cursos clínicos de nossa instituição, propostos por docentes e pesquisadores(as) com no mínimo dez anos de clínica e transmissão.




 

Notas


[1] O nome das obras citadas no vídeo foi substituído pelo título que aparece nas Obras Completas de Sigmund Freud publicadas pela Companhia das Letras.


[2] Confira também a seguinte versão: FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Tradução de Marilene Carone. São Paulo, Cosac e Naify, 2011.


[3] FREUD, Sigmund; FREUD, Anna. Bate-se numa criança. Tradução de Kristina Michahelles e Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. [Coleção Freud e seus interlocutores].


[4] FREUD, Sigmund. O incômodo. Tradução de Paulo Sérgio de Souza Jr. São Paulo: Blucher, 2021.


[5] FREUD, Sigmund. Projeto de uma psicologia científica. Tradução de Osmyr Faria Gabbi Junior. Rio de Janeiro: Imago, 1995.


[6] Confira A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess (1887-1904).

* Volume ainda não publicado.



 

Transcrição


Transcrição adaptada realizada pelo psicanalista e pesquisador Thales de Medeiros Ribeiro. Mestre e doutor em Linguística pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL-Unicamp). Pós-doutorando na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP). Vice-líder do grupo de pesquisa PsiPoliS (Psicanálise, Política, Significante) do IEL-Unicamp. Integra do Fórum do Campo Lacaniano da Região Metropolitana de Campinas (em formação), e docente da Pós-graduação em Psicopatologia, Psicanálise e Clínica Contemporânea do Instituto ESPE.




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