Como trabalha um psicanalista de crianças?
- Instituto ESPE

- 17 de out.
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Texto escrito por Renata Wirthmann, Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília com pós-doutorado em Psicanálise pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A escuta analítica das crianças exige do psicanalista uma dupla delicadeza: por um lado, sustentar a ética do sujeito do inconsciente; por outro, preservar a invenção lúdica própria da infância.
É importante lembrar que nenhum tratamento analítico, incluindo a clínica com crianças, deve ter como objetivo converter a criança em objeto de adestramento, de educação ou de normatização. Toda clínica psicanalítica considera e aposta no sujeito, em qualquer um dos seus tempos, e respeita sua singularidade.
Vivemos, na contemporaneidade, um desejo implacável de normatização que aparece em severas tentativas de padronizar, limitar e treinar as crianças em padrões. Diante dessa insensata intenção, o discurso analítico nunca foi tão importante como hoje, para funcionar como um contraponto dessa lógica normalizadora, como uma forma de dialogar ante esse discurso de homogeneidade da atualidade, buscando se abster de qualquer delírio de norma e visando compreender eticamente o sintoma como aquilo que o sujeito tem de mais singular.
Ao apostar no sujeito, a psicanálise aposta na sua singularidade pois, como observa Jacques-Alain Miller, “o discurso analítico não reconhece outra norma além da norma singular (...). É preciso escolher: o sujeito ou a sociedade. E a análise está do lado do sujeito”.
Como sabemos, a infância sempre causou incômodo. Tanto que no Caso do Pequeno Hans, em 1909, Freud expõe que “na educação das crianças, queremos apenas ser deixados em paz, não queremos passar por dificuldades e, em suma, queremos criar uma criança bem-comportada, pouco nos importando se esse desenvolvimento também é proveitoso para ela”. Diante desse conhecido insuportável da infância, percebemos, na contemporaneidade, a ampliação deste esforço de silenciar as crianças, através das telas, dos diagnósticos e da medicalização.
Partindo de Freud a Lacan, e passando por autores contemporâneos que tematizam o brincar, a transferência e os impasses tecnológicos do nosso tempo, o trabalho clínico, do psicanalista que pretende atender crianças, percorre cinco movimentos contínuos.
O primeiro movimento situa o fundamento da prática: a escuta como gesto contranarcísico. Lacan lembra, no Seminário 3, que o próprio fundamento do discurso inter-humano é o mal-entendido. Isso implica admitir, desde o início, que nada deve ser compreendido de imediato. Para realmente escutar, o analista jamais pode ceder à tentação de se decifrar rapidamente; pelo contrário, a escuta analítica implica em acolher o desajuste estrutural entre significante e significado.
Já Freud, em Recomendações aos médicos que praticam a psicanálise, de 1912, atenta que se o clínico ficar preso às suas expectativas ou inclinações, encontrará apenas o que já sabe. Escutar a criança implica separar-se da urgência de nomear, explicar, confortar ou corrigir. Exige aceitar a alteridade. Esse difícil trabalho de desidealização é contranarcísico porque recoloca o eu num lugar de não-saber. Apenas quando o analista suporta o vazio de sua ignorância é que o discurso infantil pode ganhar direito de cidadania, inclusive com seus vocábulos incompletos, seus objetos idiossincráticos e suas pausas aparentemente sem sentido. Sem tal suspensão, a criança será apenas uma síntese das expectativas familiares e escolares, nas quais qualquer traço singular correrá o risco de ser tomado como um déficit ou um excesso que resultará em um diagnóstico e uma medicação que atenda aos anseios e incômodos das instituições ao redor da criança.
No segundo movimento, precisamos fazer o manejo da transferência com crianças e com seus pais. Não há análise sem transferência, ainda que ela se organize de modo específico quando o paciente está em seus tempos de infância. O encontro inicial com a criança costuma acontecer após o encontro com as queixas parentais e os relatórios escolares. O grande desafio do analista é receber a criança de mãos vazias, sem o saber prévio e aberto a iniciar uma investigação que comece pela criança e não que apenas passe por ela.
Quando a criança percebe que o analista realmente a escuta, a transferência se estabelece, como percebemos no caso Hans. Ao voltar para casa, após seu encontro com Freud, o menino indagou ao pai: “O professor fala com o querido Deus pra poder ficar sabendo de tudo antes?”. Este é o nível de encantamento que a criança tem quando percebe que alguém a escuta. E qual o lugar do texto oferecido pelos pais e pelas demais instituições? Simples: cabe ao analista acolher a voz desses terceiros sem se tornar funcionário contratado para sanar tais queixas. Entre a fala do entorno da criança e o desejo infantil, o analista recebe a fala ao redor, mas aposta no desejo da criança como guia para a direção do tratamento.
O terceiro movimento busca apostar no brincar como via de acesso ao inconsciente nos tempos da infância. Em Escritores criativos e seu devanear, de 1908, Freud sustenta que a criança, ao brincar, constrói um mundo próprio e investe nele grande quantidade de afeto. O brincar, na clínica com crianças, é trabalho psíquico, é trabalho de elaboração. Para Lacan, de modo semelhante, brincar é escrever, ou seja, uma proposta de escrita cifrada que convoca o interesse do analista em ler e decifrar: “Tudo se passa como se tivesse algo escrito no corpo. Alguma coisa que se oferece como um Enigma”, nos explica o psicanalista na Conferência de Genebra sobre o sintoma, em 1975.
Quando a criança alinha carrinhos, gira rodas ou inventa personagens, traça hieróglifos que pedem decifração, que apenas mediante a transferência, podem ser lidos. Do contrário, sem um leitor capaz, as brincadeiras cifras das crianças permaneceriam, como nos diz Lacan nos Escritos, em 1957, perdidas como “hieróglifos no deserto”. Daí a importância de distinguir três possibilidades de operações de leitura no brincar, imprescindíveis ao clínico que pretende atender crianças: a transcrição (escrever o som), a tradução (escrever o sentido) e a transliteração (escrever a letra). O analista não traduz o brincar em significados prontos; antes, propicia que a repetição lúdica se reescreva, autorizando o sujeito a criar novos traços e, por fim, sair da posição de ser o sintoma da família para construir seu próprio sintoma, que permitirá, ao sujeito, estruturar toda sua vida adulta.
No quarto movimento, examinamos as variações nas diferentes estruturas clínicas, pensando, a partir de Jean-Claude Maleval, no autismo como quarta estrutura. Na neurose, a fantasia comparece como enredo articulado; o jogo de casinha, de monstros ou de heróis permite que desejos recalcados se desdobrem através do texto do brincar. Na psicose, falta a mediação simbólica: o brincar surge empobrecido ou excessivamente idiossincrático, exigindo do analista a invenção de um enquadre que introduza ritmo e laço. Na perversão infantil — entendida não moralmente, mas estruturalmente —, o jogo se organiza em cena transgressora que convoca o olhar do Outro. Bruce Fink nos lembra que a criança se exibe ao Outro, como se dissesse “sei que foi proibido, mas vou encenar essa imposição com alguém que ocupe o lugar dele, farei essa pessoa pronunciar a lei”.
Já o autismo, concebido aqui como quarta estrutura, apresenta um brincar centrado na borda autística, composta por objetos autísticos, duplo e ilhas de interesse, com ênfase em brincadeiras repetidas e sensório-motoras, principalmente nos primeiros tempos do sujeito autista. O desafio clínico será acolher os elementos singulares da borda autística e, pouco a pouco, ofertar variações que abram fendas simbólicas sem agredir ou invadir a defesa primordial que elas garantem.
Por fim, o quinto movimento enfrenta a contemporaneidade dominada por telas, diagnósticos apressados e excesso de medicalização da infância. Como afirma a psicanalista Inês Catão, “as telas são hoje a maior ferramenta de silenciamento da infância”. Diante dessa realidade, nós, analistas, temos encontrado crianças cuja experiência lúdica foi colonizada por algoritmos de recompensa instantânea que impedem que a criança encontre, no ócio do tempo, a criatividade de invenção com os objetos mais cotidianos.
A pandemia, sem dúvida, intensificou essa captura, e temos encontrado os efeitos disso nas crianças que chegam à clínica. A clínica é, portanto, convocada a reinserir o vazio que a tela preenche nos atendimentos e nas orientações aos pais: devolver à criança o tédio fecundo que antecede o brincar, reinstalar a alternância presença/ausência, recolocar o Outro como leitor deste corpo infantil que brinca e que, através do brincar, trabalha e elabora psiquicamente. Ao ocupar esse lugar revolucionário de se opor ao funcionamento acelerado dos nossos tempos, o analista se opõe, da mesma forma, à lógica contemporânea de completude imaginária e reafirma a aposta freudiana: todo sintoma, inclusive o sintoma sob a forma de excesso tecnológico e de manifestações sintomáticas, é o modo mais singular que o sujeito encontra para endereçar uma pergunta que precisa de um leitor.
Esses cinco movimentos delineiam o trabalho do psicanalista de crianças: escutar além do narcisismo dos adultos, incluindo do próprio analista; sustentar a transferência sem sucumbir à demanda parental ou de outras instituições; ler o brincar como escrita cifrada; diferenciar a direção de tratamento segundo as estruturas clínicas (neurose, psicose, perversão e autismo); e resistir às imposições de funcionamento e de aceleração da contemporaneidade.
Trata-se de uma prática que, longe de normalizar ou adestrar, confia na potência criativa do brinquedo e aposta na possibilidade de construir, na clínica, o desejo da criança, para além de responder, através dos seus sintomas, ao que há de sintomático na estrutura familiar. Na medida em que se dispõe a ler o sintoma da criança através da leitura do brincar, que, como disse Lacan, foi feito para não ser lido, o analista oferece à criança a dignidade de sujeito de linguagem — aquele que, ao brincar, inventa um mundo e, com isso, inventa a si mesmo.
Para a psicanálise a criança é um sujeito. Pensar o sujeito em tempos não permitirá ao analista a ilusão de padronizar ou adestrar a infância. Consideramos a criança como um criador, sobretudo a partir da própria origem da palavra ‘criança’, como ‘creantia’, de ‘creare’. A palavra criança se refere, portanto, a criar, transformar, inventar ou produzir. A concepção da criança ligada ao ato criativo funda ou institui a percepção da criança, para a psicanálise, como única, singular, feita para existir a partir daquilo que cria. Por isso, encerro retornando a Freud, em Escritores criativos e seu devanear: “O escritor faz o mesmo que a criança ao brincar; constrói um mundo de fantasia que leva bastante a sério”.
*Renata Wirthmann é psicanalista, escritora e professora do curso de Psicologia da Universidade Federal de Catalão (UFCAT). Possui pós-doutorado em Teoria Psicanalítica na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutorado em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB), mestrado em Psicologia pela UnB e graduação em psicologia pela PUC-GO.



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