A formação de um psicanalista é uma questão que tem atraído o interesse da comunidade psicanalítica, já desde Freud, que por sinal esmiuçou esse tópico em seu clássico A questão da análise leiga, texto de 1926, no qual deixava claro que a Psicanálise não poderia se restringir ao domínio da Medicina, como era comum na época, como se fosse uma prática exclusiva dos médicos. Caso fosse nos dias de hoje, Freud provavelmente acrescentaria a Psicologia, ou seja, deixaria claro que a Psicanálise estaria fora dos domínios acadêmicos da Medicina e da Psicologia, ainda que por eles passe, tanto em termos de informação, como parte integrante dos currículos dessas duas graduações, ou ainda, ironicamente, como deformação, na verdade sendo apresentada – e interpretada pelos alunos – como mais uma tecnologia de tratamento, ao lado de outras modalidades terapêuticas, simplificando e relativizando sua potência vital, tanto de tratamento quanto de pesquisa das questões psíquicas mais profundas da alma humana.
Diante disso, Freud deixa claro que a formação de um psicanalista vai além dos bancos acadêmicos, instaurando-se aos poucos uma noção que hoje é aceita no meio psicanalítico, que a formação de um psicanalista passa por um tripé, ou seja, se apoia em três elementos fundamentais, a análise pessoal, a supervisão e o estudo permanente da teoria.
A análise pessoal, tomada como o ponto central da formação, permite ao jovem analista o contato mais próximo com a técnica, defrontando-se com seu inconsciente mediado pelo amor de transferência junto ao psicanalista que por ele foi eleito, muitas vezes sem saber as reais razões de tal decisão. Uma boa análise, quando de fato acontece, permite que o analisando, quer ele pratique a psicanálise ou não, vá aos poucos se assenhoreando de pontos de saber acerca de sua estrutura e de como os seus sintomas foram se engendrando pela vida. Com isso, depois de um certo tempo de análise, começa a se escutar e, com isso, poderá escutar o outro, muitas vezes se surpreendendo com essa constatação. É aí que nasce o analista, alguém que poderá praticar a Psicanálise de forma viva, acolhendo quem eventualmente o procurar.
Outro ponto reside na supervisão com um colega mais experiente, uma forma de transferência de trabalho muito importante na formação, pois o supervisor escuta aquilo que claudica nos casos trazidos pelo supervisionando, quase inevitavelmente ligados aos aspectos contratransferenciais, aos pontos cegos que precisam ser esmiuçados em sua análise, ou seja, a supervisão regular ajuda na análise do jovem analista, mais do que um trabalho de controle da parte técnica, como se isso se limitasse ao que estivesse, supostamente, certo ou errado, sendo que entram em jogo muitos aspectos mais sutis, que se tornam cruciais nas supervisões.
E, finalmente, o contato permanente com a teoria, quer seja de maneira mais formal, em cursos estruturados de psicanálise, como este do ESPE, por exemplo, que se organiza em um modelo de pós graduação, ou ainda em outros modelos de transmissão, algo comum atualmente pela internet, que permitiu democratizar o acesso ao conhecimento psicanalítico por mais pessoas. O mais importante é estar sempre lendo, pesquisando, ouvindo e assistindo psicanalistas tratando de Psicanálise, um exercício permanente de apropriação da teoria psicanalítica.
Mas, para que esse tripé consiga sua efetividade, é necessário que o iniciante no mundo da formação em Psicanálise, mude sua posição subjetiva, ou dizendo de outra forma, que saia da posição passiva de aluno, de um coadjuvante que aguarda pacientemente a instrução que um professor que sabe mais do que ele e, ao contrário, de maneira ativa, assuma o protagonismo e tome a formação em sua próprias mãos, agindo na busca de elementos que redundem na sofisticação de sua formação e, especialmente, que isso redunde em uma boa prática clínica, exercida eticamente e em consonância com o que já foi estabelecido no campo psicanalítico, como aliás Freud (1914 e 1925) demonstra em dois momentos de sua obra, quando redige a história da psicanálise e também de um estudo autobiográfico que relata seus percalços na senda da Psicanálise.
A formação em Psicanálise é uma aventura e só pode ser empreendida por aqueles que aceitam se entregar de corpo e alma e, mais que se formar, se transformar!
Escrito pelo psicanalista Leandro dos Santos, Doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP) e analista docente das especializações em Psicanálise do Instituto ESPE.
Sugestões bibliográficas para aprofundamento:
FREUD, S. (1914). A história do movimento psicanalítico. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 14, p. 16-88).
FREUD, S. (1925[1924]). Um estudo autobiográfico. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 20, p. 17-88).
FREUD, S. (1926). A questão da análise leiga. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago: 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 20, p. 211-284).
FREUD, S. (1927). A questão da análise leiga/Pós-escrito. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 20, p. 301-314).
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