O sequestro da infância pelas telas e algoritmos: uma leitura psicanalítica
- Instituto ESPE

- há 3 dias
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Texto escrito por Renata Wirthmann, Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília com pós-doutorado em Psicanálise pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenadora da Pós-graduação em Psicanálise com Crianças e Adolescentes do Instituto ESPE.

Qual o impacto das telas, das redes sociais e, principalmente, dos algoritmos sobre sobre o sujeito na infância? Convido você, neste texto, a realizar um retorno aos conceitos de inconsciente, em Freud, e de sujeito, em Lacan, para pensarmos as transformações do sujeito e, claro, do Outro, nesses nossos tempos sob as influências de IAs e algoritmos. A descoberta freudiana do inconsciente inaugurou a revolucionária ideia de que um eu soberano e dono da própria consciência não existe. Freud expõe essa constatação com sua famosa frase: “O eu não é senhor da sua própria casa”, o que significa que, a despeito da vontade do eu, o inconsciente se manifesta e nos atravessa sem pedir licença através de lapsos, sonhos, chistes e atos falhos. Com Freud, relido por Lacan, descobrimos que as formações do inconsciente desmentem qualquer pretensão de que o eu possa controlar, completamente e conscientemente, o que cada um de nós diz e faz. Nesta leitura rigorosa, Lacan dirá que o inconsciente freudiano não é um porão obscuro ou uma espécie de caixa preta, mas o modo como o sujeito se manifesta, através da linguagem, que advém do discurso do Outro. Por isso, podemos pensar no sujeito não como substância ou identidade prévia, mas como efeito de linguagem. Dessa forma, afirmamos que o sujeito, para Lacan, não nasce ou se desenvolve, o sujeito se constitui a partir do campo da linguagem. Outra característica importante do sujeito é a sua transitoriedade, ou seja, o sujeito não é um tipo de existência permanente. Em resumo, o sujeito lacaniano é dividido, transitório e, sobretudo, falante e faltante. Partindo da afirmação de que o sujeito não é algo ou alguém que tenha algum tipo de existência permanente, percebemos o quanto é urgente e imprescindível pensarmos sobre o impacto das telas, redes e algoritmos ao longo da nossa vida. Se o sujeito lacaniano é um acontecimento de linguagem, um efeito na travessia entre um significante e outro significante (S1 e S2), então os ambientes algorítmicos (feeds, recomendações, notificações) podem funcionar como dispositivos que constroem cenários e ocasiões capazes de moldar os modos de manifestação do sujeito em cada um de seus tempos, ao longo de toda sua vida. Para seguir neste debate, vou incluir duas importantes referências do nosso tempo acerca do estudo das novas tecnologias. Desde Freud, a psicanálise sempre se sustentou em um diálogo aberto com múltiplos campos do saber — da biologia à literatura, da medicina à arte e à mitologia — para elaborar seus conceitos e expandir sua clínica. Esse movimento não foi secundário, mas constitutivo: Freud lia Goethe, Shakespeare, Sófocles, Darwin e os neurologistas de sua época para compor o arcabouço de sua teoria. Lacan retomou essa tradição, convocando linguística, matemática, topologia e filosofia para reformular o lugar do sujeito e do inconsciente. Hoje, ao recorrer a autores como Max Fisher (A Máquina do Caos) e James Bridle (A Nova Idade das Trevas), sigo esse mesmo gesto: ler, nas tecnologias e em suas engrenagens algorítmicas, novos modos de organização do laço social, novas formas de captura e de gozo, recolocando o conceito de sujeito no centro do debate contemporâneo. No livro A Nova Idade das Trevas: A tecnologia e o fim do futuro, de James Bridle (2019), percebemos que “ao longo do último século, a aceleração tecnológica transformou nosso planeta, nossa sociedade e nós mesmos”. Entretanto, é importante avaliar quais transformações seriam essas, tanto na esfera singular quanto coletiva. Verificamos, a partir da pesquisa de Bridle, que a atual era digital, apesar de avanços tecnológicos, está nos levando a uma nova fase de incompreensão e retrocesso social, cultural e político, por isso o autor nos convida, de modo bastante provocativo, a pensar na analogia com a conhecida "Idades das Trevas", em referência à Idade Média que ocorreu na Europa entre os séculos V e XV. A outra referência, para fundamentar esse diálogo, é A máquina do caos, de Max Fisher (2023), no qual também encontramos a constatação de que hoje estamos “absolutamente emaranhados em sistemas tecnológicos que, por sua vez, moldam a maneira como agimos e pensamos”. Nesta obra, Fisher reconstrói, com documentos e fontes técnicas, como as grandes plataformas buscam engajamento e amplificam conteúdos mais sensacionalistas, o que mina o debate público e eleva a polarização. Tendo organizado nossos conceitos - inconsciente e sujeito - e nossos livros de referência no campo da tecnologia - Fisher e Bridle -, seguiremos agora analisando o impacto das telas, redes e algoritmos nos primeiros tempos do sujeito, no período de sua infância. Afinal, se, para a psicanálise, o sujeito não é uma essência estável, e sim um efeito da linguagem e do desejo do Outro, é possível reconhecer que o algoritmo das plataformas ocupa, no contemporâneo, a função desse Outro que fala, convoca e organiza modos de gozo.
Tendo organizado nossos conceitos - inconsciente e sujeito - e nossos livros de referência no campo da tecnologia - Fisher e Bridle -, seguiremos agora analisando o impacto das telas, redes e algoritmos nos primeiros tempos do sujeito, no período de sua infância. Afinal, se, para a psicanálise, o sujeito não é uma essência estável, e sim um efeito da linguagem e do desejo do Outro, é possível reconhecer que o algoritmo das plataformas ocupa, no contemporâneo, a função desse Outro que fala, convoca e organiza modos de gozo.
Segundo o autor: “A tecnologia das redes sociais exerce uma força de atração tão poderosa na nossa psicologia e na nossa identidade, e é tão predominante na nossa vida, que transforma o jeito como pensamos, como nos comportamos e como nos relacionamos uns com os outros”.
Max Fisher descreve, nesta obra, que as plataformas digitais foram desenhadas para funcionar como verdadeiros cassinos cognitivos: notificações intermitentes, recompensas aleatórias e feeds infinitos mobilizam o circuito dopaminérgico e mantêm o sujeito conectado por longos períodos. Esse efeito, que ele chama de “efeito cassino”, não é um acidente, mas o núcleo da engenharia algorítmica orientada a maximizar tempo de tela.
Em bebês e crianças pequenas, tal dinâmica se mostra ainda mais perigosa, pois, justamente no momento em que a pulsão está em pleno processo de montagem, o algoritmo oferece objetos que respondem sem falhar, sem cortes e sem intervalos, alimentando uma ilusão de satisfação contínua. O que é desenhado para gerar lucro se articula, então, a uma captura precoce do sujeito em formação, impactando sua relação com a linguagem, o desejo e o laço social.
Na leitura de Lacan, a pulsão não busca um objeto pronto que venha completá-la, mas circula em torno de um vazio estrutural, de um objeto perdido que nunca se oferece plenamente — o objeto a. O que sustenta o desejo não é a posse, mas o intervalo, a frustração e a possibilidade de simbolizar a falta. O vídeo infinito, o autoplay ou o jogo algorítmico de repetição simulam, ao contrário, uma satisfação ilimitada, confundindo o circuito pulsional. Em vez de aprender a lidar com a espera, a criança é enredada num gozo repetitivo que curto-circuita o acesso ao desejo.
Bridle, por sua vez, mostra, em sua crítica ao YouTube infantil, que perfis de crianças se constituem rapidamente e passam a ser alimentados por uma sucessão interminável de vídeos hipnóticos, produzidos em escala para capturar “cada vez mais olhinhos”, inclusive de crianças de três anos ou menos que assistem no dispositivo dos pais. A ausência de intervalos, a sobrecarga visual e a ausência de endereçamento singular configuram um ambiente abusivo, consequência direta da lógica de recompensa automatizada, articulada ao incentivo capitalista.
O risco clínico, nessa perspectiva, é claro: quando o olhar e a voz — objetos pulsionais fundamentais — são oferecidos de modo on demand, sem ausência, sem espera e sem o furo estrutural que sustenta o desejo, a criança é privada da experiência constitutiva de presença-ausência do Outro. A psicanálise nos permite, então, nomear esse processo como captura da pulsão em gozo repetitivo, onde o brincar — espaço de autoria e simbolização — é substituído por jogos fechados, que reforçam a heteronomia e enfraquecem a função da falta.
Quando a curadoria algorítmica começa a organizar o “próximo vídeo” e a sequência de estímulos, ela fornece significantes e ritmos de presença/ausência que se soldam as primeiras respostas da criança ao desejo do Outro. Mesmo sem “conteúdo extremo”, o autoplay e a recomendação já instalam uma gramática de espera e urgência, facilitando que a criança se deixe representar por marcas de atenção que não domina. O ponto clínico é ajudar a construir cortes (fendas no Outro) que mostrem que nem tudo está previsto no feed — condição da separação. Estruturalmente, é exatamente a experiência de que o Outro é fendido que permite que o sujeito não se confunda com o fluxo.
*Renata Wirthmann é psicanalista, escritora e professora do curso de Psicologia da Universidade Federal de Catalão (UFCAT). Possui pós-doutorado em Teoria Psicanalítica na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutorado em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB), mestrado em Psicologia pela UnB e graduação em psicologia pela PUC-GO.



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