Textos em Freud para a psicanálise com crianças
- Instituto ESPE

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Texto escrito por Renata Wirthmann, Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília com pós-doutorado em Psicanálise pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenadora da Pós-graduação em Psicanálise com Crianças e Adolescentes do Instituto ESPE.

A psicanálise com crianças nasce da releitura atenta dos textos freudianos. É na obra de Freud que encontramos os primeiros esteios conceituais para sustentar o trabalho de escuta das crianças. Antes mesmo das contribuições de Melanie Klein, Winnicott, Dolto e Lacan, Freud deixou um verdadeiro mapa teórico e clínico para pensar a infância e suas manifestações subjetivas. Revisitar esses textos nos permite encontrar material teórico para elaborar sobre as questões com as quais nos deparamos hoje na clínica com crianças.
O mapeamento da clínica com crianças na obra de Freud inicia seu percurso de leitura pelos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de 1905. Ao introduzir a noção de sexualidade infantil, Freud desestabiliza a visão romântica da infância como um tempo de pureza e inocência desresponsabilizado. “A vida sexual não começa na puberdade; ela se apoia em disposições infantis”, teoriza Freud. Nesta pesquisa, encontramos a criança como um ser pulsional em busca de modos singulares de satisfação. A fórmula, tantas vezes citada, da criança como “pequena perversa polimorfa” nos aponta a importância de reconhecer as diferentes zonas erógenas e, consequentemente, as múltiplas vias de satisfação que se deslocam ao redor do corpo, e os sintomas infantis que não cabem nas tabelas do desenvolvimento. Reconhecer a sexualidade infantil é reconhecer também que o sintoma da criança fala de um sujeito do inconsciente, atemporal, e não apenas de uma etapa transitória fixada numa lógica cronológica.
Pouco tempo depois, Freud se dedicou ao fantasiar da criança no texto O poeta e o fantasiar, de 1908. Este texto oferece, à clínica com crianças, sua principal ferramenta: o brincar. Com Freud, aprendemos que o brincar é o modo pelo qual a criança organiza sua realidade psíquica, oferecendo, à criança, a possibilidade de compor o seu próprio texto, uma narrativa sobre si mesma que permitirá elaborar cada um de seus conflitos. Para Freud, portanto, a criança brinca porque deseja: “o brincar da criança é determinado por desejos”. Nesse brincar, ela “abre o jogo”, pois o brincar é “a atividade que mais agrada e a mais intensa das crianças”. Por isso, Freud constatou que “toda criança brincando se comporta como um poeta, na medida em que cria o seu próprio mundo”. A brincadeira é, dessa maneira, manifestação do inconsciente, e se torna, para a clínica com crianças, material de escuta e decifração.
No mesmo ano, Freud publica mais um texto imprescindível para a clínica com crianças: Teorias sexuais infantis, de 1908. Neste, encontramos a articulação de elementos importantes dos dois textos antes citados. Se, em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud nos revela a existência da sexualidade infantil e, em O poeta e o fantasiar, nos chama atenção para a construção da realidade psíquica através do brincar, neste terceiro texto encontramos teorias que explicitam que a criança possui um saber sobre seu próprio corpo. As teorias sexuais infantis são fundamentais, na clínica com crianças, para acessar como a criança pensa, fantasia e simboliza seu corpo, o corpo do outro e seu lugar no mundo.
Dentre as mais diferentes teorias infantis, Freud mostra que a criança elabora hipóteses próprias sobre a origem dos bebês, sobre a diferença anatômica e sobre o ato sexual. Na clínica com crianças, segundo Freud, aprendemos que escutar a criança é acolher suas produções singulares de saber, sem impor compreensões adultas que anulem ou desvalorizem a lógica de pensamento da criança.
Caminhando mais um ano por este percurso pela obra de Freud que nos permite fundamentar a clínica com crianças, chegamos ao célebre Caso do Pequeno Hans, de 1909. Trata-se do primeiro grande caso clínico infantil na obra freudiana, que inaugura a clínica psicanalítica com crianças. O tratamento de Hans foi mediado pelo seu pai, sob orientação de Freud. Trata-se de um caso de fobia. A fobia de Hans — medo de cavalos que poderiam mordê-lo — articula questões sobre sexualidade, nascimento e castração. Neste texto, Freud nos mostra que a fobia de Hans desloca e articula questões que o perturbam como: os enigmas do nascimento, a excitação corporal, o amor pela mãe, a ameaça de castração.
Seguindo nossa caminhada, chegamos no ano de 1920, com o texto Além do princípio do prazer. Freud introduz a compulsão à repetição e a pulsão de morte, recolocando o brincar num novo registro: não se trata apenas de simbolização prazerosa, mas também da encenação repetitiva de algo insuportável. O famoso jogo do carretel — em que a criança lança e puxa o objeto dizendo “fort-da” — mostra que o brincar pode ser uma tentativa de dominar a ausência, de elaborar a perda, mas também de repetir a angústia. A criança, portanto, dramatiza a ausência para dominar o insuportável de uma perda. Esse ponto muda a leitura clínica do jogo: nem toda brincadeira é expressão de prazer; às vezes, é insistência no pior, retorno do que há de traumático.
Dando mais um passo neste nosso mapeamento da clínica com crianças na obra de Freud, acessamos o ensaio: Organização genital infantil, de 1923. Neste, Freud articula a chamada primazia fálica. O que a clínica infantil ganha com isso? A clareza de que a diferença sexual não se deduz de uma lição de anatomia, mas no modo como a criança se organiza simbolicamente nas diferentes fases do desenvolvimento psicossexual. Essa organização sustenta suas fantasias, medos e rivalidades. Este texto de 1923 oferece, à clínica com crianças, a constatação de que a existência da criança é uma tessitura entre o corpo e a linguagem.
Avancemos mais três anos na obra de Freud e encontraremos, em 1926, um artigo de imprescindível leitura: Inibição, sintoma e angústia. Nesse texto, Freud reformula sua teoria da angústia, situando-a como sinal diante de uma ameaça de perda do objeto ou de castração. Para a clínica infantil, esse deslocamento é essencial: não se trata de eliminar os sintomas da criança a qualquer custo, mas de reconhecer a função que eles desempenham diante da angústia.
Por fim, fechando este mapa proposto para definir, em Freud, as bases da clínica com crianças, recomendo avançarmos para as Novas conferências introdutórias à psicanálise, de 1933, especialmente na Conferência 34 — Esclarecimentos, explicações, orientações, na qual encontramos Freud retomando os principais pontos de sua teoria, inclusive no que se refere à sexualidade infantil e às neuroses. Ali ele insiste na distinção entre psicanálise e pedagogia, lembrando que a análise não educa, e sim sustenta uma experiência de falta em que desejo, defesa e fantasia possam se dizer. Para quem trabalha com crianças, isso é uma bússola ética: ninguém determina uma criança à imagem de um manual ou dos pais; tampouco a psicanálise se ocupa de adaptá-la a normas de comportamento.
Este mapeamento das bases da clínica com crianças na obra de Freud, entre os anos de 1905 e 1933, mostra uma continuidade. O que começa como o reconhecimento da sexualidade infantil se desdobra em uma compreensão cada vez mais sofisticada da fantasia, do sintoma, da fobia, da repetição e da angústia. Ler Freud nessa sequência é perceber que a psicanálise com crianças não é um anexo à psicanálise dos adultos, mas está inscrita no coração de sua teoria. O sintoma da criança, sua brincadeira, sua angústia e suas hipóteses sobre o corpo não podem ser reduzidos a estágios do desenvolvimento, mas devem ser escutados como produções do inconsciente.
Entrar neste mapa desenhado com os textos de Freud sobre a infância é descobrir que a psicanálise com crianças não é um anexo tardio da teoria, mas um eixo que percorre a obra desde o início. Em vez de aplicar a mesma psicanálise dos adultos numa pessoa pequena, Freud nos pede algo muito mais inovador e interessante: reconhecer, no brincar, nas perguntas e nos sintomas, a mesma lógica do desejo e da fantasia que opera em qualquer sujeito nos demais tempos da vida.
*Renata Wirthmann é psicanalista, escritora e professora do curso de Psicologia da Universidade Federal de Catalão (UFCAT). Possui pós-doutorado em Teoria Psicanalítica na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutorado em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB), mestrado em Psicologia pela UnB e graduação em psicologia pela PUC-GO.



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