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Por que estudar o caso Hans hoje?

  • Foto do escritor: Instituto ESPE
    Instituto ESPE
  • 18 de nov.
  • 9 min de leitura

Texto escrito por Renata Wirthmann, Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília com pós-doutorado em Psicanálise pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenadora da Pós-graduação em Psicanálise com Crianças e Adolescentes do Instituto ESPE.

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Freud publicou, em 1909, seu primeiro e mais famoso caso clínico de atendimento de uma criança. Trata-se da análise da fobia de um garoto de cinco anos, o caso do Pequeno Hans. Conhecer este caso clínico é imprescindível para compreender o surgimento da clínica psicanalítica com crianças. No entanto, para demonstrar isso, é preciso, antes de tudo, contar um pouco quem foi o Pequeno Hans, apontar o surgimento de sua fobia, apresentar as especificidades e o percurso do seu tratamento, e, por fim, explicar por que esta obra é leitura obrigatória para todo psicanalista que pretende atender crianças.

Vou começar pelo nosso querido Hans que, na verdade, chamava-se Herbert Graf. Ele nasceu em Viena, em 1903, e era filho de Max Graf e Olga Honig. Seu pai era escritor, crítico musical e membro próximo do círculo de Freud, participava das reuniões da Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras (futuro núcleo da Sociedade Psicanalítica de Viena) e tinha grande interesse em aplicar as descobertas freudianas à sua vida cotidiana. A mãe de Hans, por sua vez, foi paciente de Freud antes do tratamento do filho. Olga procurou Freud, em 1900, para tratar sintomas depressivos e ansiosos. A família fazia parte da elite cultural vienense, de modo que esses três elementos, conjuntamente, contribuíram para a confiança depositada em Freud acerca de Hans, assim como a intensa participação dos pais em todo percurso de tratamento.

Hans foi tratado de maneira bem particular. Freud não atendeu diretamente o menino em sessões regulares, de maneira que o acompanhamento se deu principalmente por meio de cartas trocadas entre Freud e o pai de Hans, que relatava detalhadamente os sintomas, as falas e as brincadeiras do filho. As correspondências começaram em janeiro de 1908, quando Hans tinha por volta de quatro anos e meio, e se estenderam até abril do mesmo ano. Nesse período foram trocadas, aproximadamente, cinco cartas com observações clínicas e orientações aos pais.

Apresentado quem foi o Pequeno Hans, a próxima etapa consiste em explicar as condições de seu adoecimento e de seu tratamento. A observação do caso do pequeno Hans permite acompanhar o surgimento e a transformação de seus sintomas, a partir de um fio cronológico que evidencia a articulação entre corpo, linguagem e fantasia.

Antes mesmo de completar três anos de idade, Hans já manifestava interesse pela diferença anatômica, dirigindo sua atenção ao que chamava de “xixizador”. Ele investigava o órgão em diversos seres e objetos: na mãe, no pai, nos animais e até numa locomotiva. Curiosamente, não atribuía esse órgão a objetos inanimados, como mesas ou cadeiras, o que denota sua primeira distinção entre seres vivos e coisas em movimento ou imóveis.

Quando Hans completou três anos e meio, nasce sua irmã, ocasião em que surge a importante questão sobre a origem dos bebês. Poucos meses depois, por volta dos três anos e nove meses, Hans observa que “o xixizador da irmã ainda é pequeno”, mas vai crescer; momento em que percebemos sua recusa da castração. Nesse mesmo período, começa a relatar sonhos com outras crianças, revelando investimentos amorosos para além da relação parental, o que indica uma abertura para a circulação do desejo.

Poucos tempo depois, aos quatro anos e três meses, os pais relatam a intensificação de sua curiosidade sexual. Hans manifesta o desejo de tocar ou ver o próprio pênis e o dos colegas, chegando a formular pedidos e sonhos com esse conteúdo. Dois meses depois, aos quatro anos e meio, ele retoma a comparação com o pênis da irmã, reiterando sua negativa diante da possibilidade da castração.

Por volta dos quatro anos e nove meses, a angústia assume maior expressão. Ele relata um sonho em que teme que a mãe vá embora, revelando seu medo da separação. A partir daí, Hans passa a demonstrar insegurança quando se encontra distante da mãe, seja ao sair de casa sem ela, seja no anoitecer, diante da possibilidade de dormir privado de sua presença. Nesse mesmo período, surge o medo de ser mordido por um cavalo.

A questão da masturbação também se coloca, quando a mãe o interroga e o adverte sobre o hábito. Embora Hans tente se reprimir, em obediência à mãe, admite que “faz mesmo assim, mas só um pouquinho”. Esse é um ponto importante, pois coincide com o início do medo sem objeto definido, descrito por Freud como “anseio erótico recalcado”. A angústia de perder a mãe e o temor de sair à rua começam a se associar ao surgimento da fobia.

O momento inaugural da fobia ocorre, portanto, em um passeio com a mãe, quando Hans experimenta um episódio de angústia ao se deparar com um cavalo. A partir daí, sua ansiedade se desloca e encontra um objeto privilegiado — o cavalo. Em seu livro, Freud observa que esse marco coincide com “a luta do Hans para perder o hábito da masturbação”. Assim, o cavalo torna-se a figura que condensa seus medos, funcionando como representante da castração, da perda materna e da interdição.

Dessa forma, a cronologia acima evidencia a progressiva elaboração das angústias de Hans, desde o interesse anatômico e a recusa da castração até a instalação da fobia, que organiza seu conflito em torno do cavalo como objeto substitutivo de seu desejo recalcado.

Apresentado o surgimento da fobia de Hans e o motivo de seus pais confiaram à Freud as observações sobre seu filho, o passo seguinte é compreender como foi o tratamento, lembrando que a psicanálise, como observa Freud,  “não é uma investigação científica imparcial, mas uma intervenção terapêutica; em princípio, ela nada quer provar, mas apenas mudar algo”. 

A partir desta posição ética, o tratamento do Hans inicia com uma primeira proposta de intervenção de Freud diante da cronologia do surgimento da fobia supracitada:

“Combino com o pai que ele diria ao menino que aquilo com os cavalos é uma tolice, não mais que isso. A verdade é que ele gosta muito da mamãe e quer que ela o leve para a cama. Que por ter se interessado tanto pelo xixizador do cavalo, ele agora estaria com medo dos cavalos. (...). Também sugeri ao pai que fosse pela via do esclarecimento sexual. (...) o pai então deveria subtrair-lhe essa meta, comunicando-lhe que a mamãe e todos os outros seres femininos, como ele bem devia saber pela Hanna, não possuem um xixizador”.

Com esta primeira proposta de Freud, inaugura-se o tratamento de Hans. No início da análise, o primeiro medo manifestado por Hans foi o de que o cavalo pudesse mordê-lo. Com o avanço do trabalho, esse temor revelou-se apenas a superfície de um medo mais profundo: o de que os cavalos caíssem. Tanto o cavalo que morde quanto o que cai representavam, simbolicamente, o pai que poderia castigá-lo pelos desejos hostis que nutria em relação a ele. Nesse momento, a análise começava a se afastar do foco exclusivo na mãe.

Em seguida, de forma inesperada e sem influência direta do pai, Hans voltou-se para o Lumpf, demonstrando nojo em relação a tudo que lhe lembrava a evacuação. Nesse mesmo período, o pai lembrou Hans de uma cena que eles tinham presenciado, na qual o cavalo caiu na rua. Essa experiência, por sua vez, remeteu a outro episódio — a queda de seu amigo Fritzl enquanto brincavam de cavalo, que lhe causara um ferimento no pé. Freud observou, a partir destas lembranças, a transformação da libido em medo: aquilo que antes era prazeroso, como os cavalos e as brincadeiras de cavalgar, converteu-se no objeto fóbico.

O foco no Lumpf reapareceu pouco depois, quando se descobriu que Hans insistia em acompanhar a mãe ao banheiro, hábito que depois repetiu com a amiga Berta, até ser proibido. Esse prazer de observar o outro nas funções excretoras foi associado ao parto.

É muito interessante constatar que, com o percurso do tratamento, a posição de Hans na análise se transformou. Se, inicialmente, ele apenas seguia as indicações do pai, agora ele avançava com a construção de suas próprias fantasias. Independente, então, das interpretações do pai, surge a fantasia do encanador que desparafusava a banheira e golpeava sua barriga com um furador. Mais tarde, Freud interpretou essa cena como uma fantasia da procriação: a banheira representava o útero materno, e o furador, um grande pênis.

Logo em seguida, o medo ligado ao banho revelou uma conexão com sua irmã recém-nascida, Hanna. Hans confessou ter desejado que a mãe deixasse a menina cair e morrer; seu próprio medo era o de ser castigado com o mesmo destino desejado à irmã. Esse deslocamento fez surgir em Hans uma compreensão mais ampla, na qual Hanna e todas as crianças eram Lumpf, assim como os carros pesados e os cavalos que tombavam simbolizavam o parto. O cavalo caindo era, simultaneamente, a vingança ao pai e a fantasia da mãe em trabalho de parto.

Pouco depois, Hans surpreendeu ao mostrar que havia percebido a gravidez da mãe desde o nascimento da irmã, ainda que de forma inconsciente. Sua fantasia de que Hanna já estivera com a família em Gmunden, antes mesmo de nascer, foi interpretada como uma vingança contra o pai, que o enganara com a história da cegonha. Esse gesto marcou também a emergência de fantasias agressivas contra o pai e sádicas em relação à mãe — agora mais claras, inclusive com a confissão de querer bater na mãe.

As fantasias seguintes ampliaram esse cenário: Hans imaginou perder o trem (antecipando a ausência do pai), planejou comprar a mãe do pai oferecendo uma soma de dinheiro e, enfim, declarou com franqueza o desejo de se livrar do pai, que atrapalhava sua relação com a mãe. Esse movimento representou um progresso na análise, pois tais desejos tornavam-se cada vez mais conscientes e explícitos.

Atos sintomáticos confirmaram os achados analíticos: ao brincar com uma boneca, Hans encenou simbolicamente um nascimento, colocando um canivete no orifício do brinquedo. Mais tarde, ao deixar um cavalo de brinquedo cair no chão, confessou, de modo disfarçado, o desejo da morte do pai. Também reconheceu que as carroças pesadas simbolizavam, para ele, a gravidez da mãe, reforçando a associação entre cavalos, parto e medo.

Por fim, duas fantasias marcaram o encerramento da análise. Na primeira, o encanador lhe fornecia um novo pênis, maior — elaborando e superando o temor da castração. Na segunda, ele se via casado com a mãe e tendo muitos filhos com ela, mas sem precisar eliminar o pai, que era deslocado para a posição de marido da avó. Essas fantasias deram uma resolução simbólica ao conflito edípico, permitindo que a fobia fosse superada.

Então, após este percurso pela vida, pela fobia e pelo tratamento de Hans, como localizar a importância desta obra para o surgimento da clínica psicanalítica com crianças e a pertinência deste estudo para a prática clínica atual? Como a clínica com crianças se estrutura a partir de Hans?

Como aponta Freud, o arranjo é, desde a origem da clínica com crianças, triádico (criança–pais–analista): "Coordenei o plano do tratamento e uma única vez também intervim pessoalmente em uma conversa com o garoto; mas o tratamento propriamente dito foi conduzido pelo pai do menino".

Essa arquitetura torna o caso atual por, ao menos, três razões: primeiro, pela importância da transferência - representada pela confiança e pela disposição dos pais e do próprio Hans para com o percurso do tratamento; segundo, pela ética da observação — Freud recomenda recolher sistematicamente as falas, os sonhos, as brincadeiras, os temores; e terceiro, pelo método clínico: interpretar é dar forma ao que a criança já diz, e não lhe impor um saber.

Do mesmo modo, podemos localizar três eixos que estruturam a clínica com crianças a partir de Hans e que segue extremamente atual na prática clínica:

No primeiro, "Dispositivo e lugares", Freud desenha a economia das intervenções: combina com o pai o uso de interpretações simples e, quando convém, esclarecimentos sexuais proporcionais (por exemplo, sobre a diferença anatômica), para retirar da fobia seu mistério sem esmagar a invenção da criança. 

Quando intervém diretamente, Freud nomeia o conflito edípico: “(...) revelou que ele temia o pai, justamente por gostar tanto da mãe”. No caminho de volta, Hans fica tão encantado com a interpretação de Freud que pergunta ao pai se “o professor fala com o querido Deus” para saber tudo: é a transferência em ato, deslocando a suposição de saber ao analista.

No segundo eixo, "Técnica e tempo lógico", o manejo gira em torno do tempo de construção do menino: primeiro, acolher a solução fóbica; depois, abrir vias de simbolização (os sonhos das girafas e a fantasia do encanador que “tira e coloca” — metáfora da castração e também de sua superação imaginária); enfim, sustentar trocas de lugar (“ser o cavalo” para dominar o medo) e favorecer reinscrições e reinvenções. A cada passo, a regra é mínima sugestão, máxima escuta: “o médico dá ao paciente representações antecipatórias com cuja ajuda ele reconhece o inconsciente”.

Em "Ética", por fim, Freud determina um limite claro: “ficou estabelecido que não se tinha o direito de zombar nem maltratar, mas que era imperativo buscar, pelo caminho psicanalítico, o acesso aos desejos recalcados”. A direção do tratamento não é corrigir comportamentos, é dar lugar à verdade infantil. Fica estabelecido que os erros e os neologismos (girafas, lumft) são palavras fundamentais para a leitura da fobia e não ruídos a apagar. *Renata Wirthmann é psicanalista, escritora e professora do curso de Psicologia da Universidade Federal de Catalão (UFCAT). Possui pós-doutorado em Teoria Psicanalítica na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutorado em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB), mestrado em Psicologia pela UnB e graduação em psicologia pela PUC-GO.


 
 
 

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