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O desenho na clínica psicanalítica com crianças: entre o traço e a palavra

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    Instituto ESPE
  • 4 de nov.
  • 7 min de leitura

Texto escrito por Renata Wirthmann, Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília com pós-doutorado em Psicanálise pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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A clínica psicanalítica com crianças guarda alguns desafios a mais quando comparada à clínica com adultos. Dentre eles, a dificuldade para acessar o sujeito em análise; neste caso, a criança desde seus primeiros tempos. Sendo assim, tais desafios convocam o analista, que pretende atender crianças, a encontrar recursos que ultrapassem a palavra falada.

A sustentação desse preceito, de acessar o sujeito para além da palavra falada, tem fundamentação na teoria psicanalítica desde Freud, que se debruçou sobre as produções infantis – brincadeiras, sonhos, sintomas, fantasias – como modos privilegiados de acesso ao inconsciente, mesmo na clínica com adultos, quando estes narravam lembranças de tais produções.

Uma dessas importantes produções, que encontramos ao longo de uma análise com crianças, é o desenho. O desenho ocupa um lugar privilegiado na clínica psicanalítica, não como simples atividade lúdica ou recurso auxiliar, mas como via de inscrição subjetiva. Desde Freud, sabe-se que a criança encontra no brincar e no desenho modos de dar forma ao sofrimento e ao mal-estar, como no caso do pequeno Hans, de 1909.

A contribuição de Lacan, por sua vez, é ainda mais decisiva para pensarmos o desenho na clínica como um ato que se situa no enlace entre Real, Simbólico e Imaginário. Lacan, no Seminário 22, nomeado como RSI, afirma que nenhum destes registros deve ser tomado isoladamente, pois o imaginário, o simbólico e o real só têm consistência quando enlaçados. O desenho, nesse sentido, pode ser pensado como uma operação de enodamento, uma tentativa de fazer passar para a superfície do papel algo dessa articulação complexa.

No registro do imaginário, o desenho surge como forma e imagem, permitindo à criança se reconhecer em contornos, experimentar identificações e projetar uma unidade ilusória de si, como no estágio do espelho, quando o eu se constitui a partir da captura de si na imagem do outro. No registro do simbólico, o traço gráfico adquire a função de significante, de inscrição que pode ser lida, repetida e articulada ao campo da linguagem. O simbólico é o que constitui o sujeito como efeito da fala e, nesse sentido, o desenho é também fala, não no nível da palavra articulada, mas da escrita que marca o lugar do sujeito. Já no registro do real, o desenho comparece como aquilo que não se deixa simbolizar inteiramente, seja na repetição insistente de um motivo, seja no enigma de uma forma que não se completa, seja na irrupção de um excesso que não encontra tradução. Como lembra Lacan, no Seminário 22, “o real é o impossível, o que não cessa de não se escrever”, e é justamente aí que o desenho pode funcionar como borda, como tentativa de inscrever o impossível sob a forma de traço.


Quando uma criança desenha, não está apenas comunicando uma ideia ou exteriorizando uma emoção; está, em ato, construindo sua posição subjetiva a partir do nó dos três registros. Cada traço no papel pode ser lido como o lugar em que o imaginário ganha forma, o simbólico da cadeia significante e o real do impossível se cruzam e se tensionam. O desenho é, assim, um modo de bordar em torno do real com os fios do simbólico e as formas e as cores do imaginário, criando uma superfície onde o sujeito pode se inscrever.


Lacan sublinha, no Seminário 23, que é preciso reconhecer o modo como cada sujeito inventa a sua própria amarração. Assim, o desenho infantil, longe de ser mero recurso auxiliar da clínica ou recurso diagnóstico, deve ser reconhecido como uma dessas invenções, um Sinthoma em ato, sustentando a amarração possível para aquela criança em seu encontro singular com a linguagem.


Essa concepção impede que o analista reduza o desenho a um conteúdo a ser interpretado a partir de manuais ou fórmulas prontas. O desenho não é uma vitrine exposta do inconsciente, mas uma escrita possível do inconsciente em ato, uma forma com a qual a criança articula RSI e que pode oferecer um importante material na análise para ser lido, pela própria criança com a participação do analista, a partir da transferência. É por isso que a clínica lacaniana exige uma escuta atenta: não se trata de perguntar o que a criança quis dizer com seu desenho, mas de reconhecer que, naquele traço, ela se enlaça de modo singular.


Essa singularidade do traço no desenho nos permite encontrar, no desenho, um importante material clínico para pensarmos, por exemplo, o trauma. No trauma, o que se apresenta à criança é um excesso do atravessamento do real que parece impossibilitar a simbolização. Freud já havia notado que a repetição, o jogo e a criação oferecem uma possibilidade de reinscrição deste traumático vivido. O célebre jogo de carretel, descrito por Freud, em Além do princípio do prazer, ilustra esse movimento: a criança reelabora a ausência da mãe por meio de um jogo simbólico (fort-da), transformando a falta da mãe em uma experiência representável. De modo semelhante, o desenho pode surgir como recurso para contornar a cena traumática, oferecendo um espaço em que o real insuportável possa ser traçado, desenhado, ou seja, contornado.


Lacan, no Seminário 11, ao abordar a questão do trauma, destaca que o real é impossível de ser dito ou inscrito de imediato. O desenho, nesse caso, seria uma tentativa de tornar esse impossível um pouco mais possível, criando bordas, através dos traços no papel, para tentar dar conta do excesso traumático. A criança que desenha uma experiência traumática não está ilustrando o que viveu, mas elaborando uma nova possibilidade de inscrição simbólica diante do real do acontecimento traumático.


Para exemplificar a relação entre desenho e trauma a partir da psicanálise, gostaria de apresentar os desenhos de um menino de 15 anos, na época em que os desenhos foram produzidos. Trata-se dos desenhos de Thomas Geve (pseudônimo de Stefan Cohn), que nasceu em 1929, em Stettin, então Alemanha, e foi deportado para Auschwitz em 1943, aos treze anos de idade.

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Desenho de Auschwitz-Birkenau feito por Thomas Geve - Divulgação/ Alta Life Editora

Thomas sobreviveu a três campos de concentração: Auschwitz, Gross-Rosen e Buchenwald, de onde foi libertado em 1945, quando tinha apenas quinze anos de idade. Durante esse período, este jovem menino viveu aquilo que ele mesmo chamou de “sobrevivência de uma infância roubada”: fome, violência, desumanização e a morte em massa que ele testemunhou.

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"Como trabalhávamos”, desenho de Thomas Geve que mostrava a vida em Auschwitz/ Crédito: Divulgação/ Alta Life Editora Após o término da guerra, o menino ficou dois meses em recuperação no próprio campo de Buchenwald, onde fez cerca de 80 desenhos retratando o que assistiu. Seus desenhos podem ser vistos no livro O Menino Que Desenhou Auschwitz. Esses desenhos não são apenas registros documentais, mas uma escrita daquilo que o discurso histórico muitas vezes não alcança: a experiência subjetiva do horror. Esses desenhos nasceram na zona cinzenta entre sobrevivência e memória: em Buchenwald, entre abril e junho de 1945, Geve usou lápis de cor e aquarela — muitas vezes no verso de formulários da administração do campo — para fixar o cotidiano dos prisioneiros, os apelos, a fome, a doença e a explosão paradoxal de vida no imediato momento pós-libertação. A proposta, portanto, é analisar este testemunho gráfico de Geve a partir da elaboração lacaniana dos registros Real, Simbólico e Imaginário (RSI), desenvolvida no Seminário 22 (R.S.I., 1974-1975) e retomada no Seminário 23 (O sinthoma, 1975-1976). É precisamente aqui que a leitura lacaniana ajuda a dar o alcance clínico e teórico desses desenhos. Lacan, no Seminário 22, lembra que “Real, simbólico, imaginário — essas três palavras têm cada uma um sentido”, e é a sua amarração que dá consistência ao sujeito. No Seminário 23, ele introduz a topologia do nó, isto é, a exigência de uma invenção que sustente juntos os registros onde faltam garantias. A sobrevivência pela imagem, em Geve, pode ser lida como essa invenção mínima: um sinthoma gráfico que amarra o que o trauma desatou.

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“Estamos livres”, desenho feito por Thomas Geve sobre a libertação de Buchenwald/ Crédito: Divulgação/ Alta Life Editora Se tomarmos um conjunto de desenhos — a chegada à rampa, a desinfecção, o apelo, a libertação com a legenda Wir sind frei (Nós estamos livres) — vemos operar, em cada um, a função RSI. No imaginário, as figuras magras, os guardas, as filas, as casas compõem uma cena onde o olhar encontra contornos e reconhecimentos possíveis. No simbólico, cada traço funciona como significante: diagramas de barracas, legendas, palavras curtas em alemão, placas, pequenas notações de tempo e espaço — tudo isso reintroduz ordem legível, reinstala uma gramática mínima da experiência e a torna transmissível.

No real, porém, insiste aquilo que a cena não dissolve: a repetição dos motivos (filas, cercas, braçadeiras, fornos), o excesso inexorável, o enigma do que transborda e retorna. É por isso que o desenho não explica o trauma; ele o bordeia. E é por isso que não é acessório: é um ato de linguagem que dá suporte ao sujeito naquele limite.

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‘Na Rampa’, desenho feito por Thomas Geve/ Crédito: Divulgação/ Alta Life Editora. Com Lacan, no Seminário 23, aprendemos que cada sujeito inventa seu modo singular de amarração entre os registros, que ele chama de Sinthoma. Podemos considerar que, para Thomas Geve, o desenho funcionou como Sinthoma. O próprio Geve afirma que precisava desenhar para sobreviver às lembranças dos campos de concentração, como se o traço sustentasse sua existência de sobrevivente. Nesse sentido, o desenho é mais do que testemunho histórico: é dispositivo clínico, ainda que fora do espaço do consultório, mas numa instituição hospitalar.

Para a psicanálise lacaniana, esse testemunho gráfico é a prova de que o desenho, longe de ser apenas expressão, é ato; ato de linguagem, ato de invenção, ato de resistência do sujeito diante do real. Os desenhos de Geve, imensamente modestos e frontais, estão do lado dessas imagens raras que fazem existir algo do acontecido, exatamente porque amarram (sem fechar) o que não cessa de não se inscrever.

Prova disso está nas declarações que Geve atribuiu a alguns de seus desenhos. Sobre o trauma dos campos, disse: "Quando eu fiz esses desenhos, tudo saiu de mim por meio deles". E seguiu: "Eu nunca mais desenhei nada além desses desenhos sobre a vida nos campos". Já sobre o impacto do desenho, pontuou: "Eu relato a verdade dos campos. Não escrevo sobre pássaros cantando porque não havia pássaros cantando. Descrevo a condição das pessoas com quem eu vivi”.

Para ele, a questão sempre foi "escrever sobre os fatos, a verdade dos detalhes sobre a vida como ela era", a verdade como ele viu. Isso se pauta na realidade estampada no papel e na escolha de juntar os desenhos e sua história no livro O Menino Que Desenhou Auschwitz: "Meu livro é a verdade sobre a vida nos campos. Muitas coisas que me foram ditas na infância eram mentiras. Então, eu queria saber a verdade. Queria descobrir a verdade sobre a vida". *Renata Wirthmann é psicanalista, escritora e professora do curso de Psicologia da Universidade Federal de Catalão (UFCAT). Possui pós-doutorado em Teoria Psicanalítica na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutorado em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB), mestrado em Psicologia pela UnB e graduação em psicologia pela PUC-GO.

 

 
 
 

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