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Repetição em Psicanálise: Da Clínica Freudiana às Automações Contemporâneas

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    Instituto ESPE
  • 4 de ago.
  • 7 min de leitura

Atualizado: 15 de ago.


Texto escrito por Renata Wirthmann, Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília com pós-doutorado em Psicanálise pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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A repetição ocupa um lugar central na teoria e na prática clínica da psicanálise. Freud percebeu, desde o início de sua prática, um fenômeno curioso acerca de seus pacientes: embora não pudessem lembrar conscientemente de determinados acontecimentos, estes se repetiam, inconscientemente, em suas experiências, seus sonhos, suas escolhas e seus comportamentos. A repetição acontecia sem o sujeito se dar conta do que repete ou mesmo por que repete. Este fenômeno foi rigorosamente analisado por Freud, em seu ensaio Recordar, Repetir e Elaborar, de 1914. Em suas palavras: O analisando não recorda absolutamente o que foi esquecido e recalcado, mas sim o atua. Ele não o reproduz como lembrança, mas como ato. Ele o repete, naturalmente sem saber que o faz”.

Essa formulação inaugura o conceito de acting out (agieren) como expressão da memória nas ações e não nas palavras. Isto é, a repetição de conteúdos recalcados por meio da atuação, da manifestação ou do comportamento. Percebemos na repetição do ato do analisando em tratamento que, como aponta Freud, "este é seu modo de recordar”, Outras manifestações da repetição em análise podem ser percebidas também nos fenômenos de transferência e de resistência. Em relação à primeira, naquele mesmo ensaio, Freud aponta que a própria transferência é, em si mesma, um tipo de repetição, embora parcial e passada: “Notamos que a transferência mesma é somente uma parcela de repetição, e que a repetição é transferência do passado esquecido”. Em relação à resistência, por sua vez, é ainda mais fácil perceber a repetição, afinal, “quanto maior a resistência, tanto mais o recordar será substituído pelo atuar (repetir)”. Serão, portanto, as resistências que irão determinar a sequência do que será repetido. Em resumo, “vimos então que o analisando repete em vez de lembrar, repete sob as condições da resistência; agora podemos perguntar: o que repete ou atua ele de fato?”. O analisando repete tudo aquilo que é de origem inconsciente como forma de, simultaneamente, manter desconhecido e conhecido. Sobre esse material que retorna sob a forma de ato que se repete compulsivamente, “devemos exercer o nosso trabalho terapêutico, que em boa parte consiste na recondução ao passado”, com o propósito de construir uma nova elaboração, mais atualizadas as exigências do analisando em sua vida presente. No entanto, essa relação entre repetição e resistência revelou uma dimensão ainda mais enigmática. Clarice Lispector, em Paixão segundo GH, explicita o aspecto enigmático da repetição. “A explicação de um enigma é a repetição do enigma. O que És? e a resposta é: És. O que existes? e a resposta é: o que existes”. Assim como Clarice, Freud, em Além do Princípio do Prazer, de 1920, descreveu a compulsão à repetição como um fenômeno que deriva da natureza mais íntima das pulsões, ou ainda, um fenômeno que aponta para o que há de mais elementar da existência de cada um de nós, independente do tratamento analítico, da repetição das notícias da existência e do funcionamento do nosso psiquismo e, portanto, da nossa própria existência. Uma outra, e paradoxal, função da repetição se relaciona ao trauma. Ao mesmo tempo que a repetição permitirá produzir, em análise, uma futura elaboração acerca do trauma, que poderá levar a uma diminuição do sofrimento, enquanto se repete, sem conseguir alcançar qualquer elaboração, a repetição parece reiterar indefinidamente uma experiência traumática não elaborada e, consequentemente, seu aspecto mais doloroso. Com efeito, tais repetências sugerem que o aparelho psíquico busca, de alguma forma, reencenar uma experiência primordial na esperança inconsciente de dominá-la – processo que, ironicamente, acaba por aprisionar o sujeito em um circuito fechado de sofrimento. Jacques Lacan, no esforço de retornar a Freud, reexaminou o conceito de repetição desde seus primeiros seminários, enfatizando o caráter estrutural da repetição, de modo a alinhá-lo à ordem simbólica. Influenciado pelo estruturalismo linguístico, Lacan concebe o inconsciente como uma rede de significantes marcada pela insistência. A famosa fórmula lacaniana de que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” determina que os elementos recalcados retornem de forma ordenada, seguindo as leis das cadeias significantes (como metáfora e metonímia). Nessa perspectiva, repetir é, antes de tudo, seguir uma lei interna da linguagem do inconsciente. É importante destacar que, assim como Freud, Lacan distingue a repetição da lembrança: não se repete o que se lembra, repete-se justamente o que não pôde ser lembrado ou significado. Lacan elabora a ideia de “automatismo de repetição" para designar essa força com a qual o inconsciente insiste em fazer a mensagem chegar a seu destino. Essa insistência do inconsciente que se manifesta na repetição é explicitada na queixa do analisando sob a forma de: “Por que sempre me acontece a mesma coisa?”. Diante desta queixa que nos chega através do tratamento analítico, o analisando será convidado a analisar o que, naquilo que se repete, nunca se repete exatamente da mesma forma. Até porque, ao se repetir incessantemente, acaba, inevitavelmente, sofrendo alguma modificação, como, novamente, nos aponta Clarice Lispector em A descoberta do mundo: “A repetição me é agradável, e repetição acontecendo no mesmo lugar termina cavando pouco a pouco, cantilena enjoada diz alguma coisa”. Lacan nos mostra, portanto, que a repetição nunca será a exata repetição do mesmo, mas a repetição em torno de um vazio, de um furo no saber e no discurso. Neste ponto da obra lacaniana, percebemos uma mudança sútil acerca do conceito de repetição. Se, em seus primeiros seminários, Lacan propôs que a repetição tinha o propósito de apontar para o que não se lembrava, agora sustenta que a repetição aponta para o que não se pode saber da experiência. A repetição insiste justamente porque sempre fracassa em sua tarefa, uma vez que esbarra em algo que ultrapassa o que pode ser lembrado ou conhecido. Há uma novidade insistente em cada repetição, justamente porque, a cada vez, o encontro com o real fracassa de modo inédito e único. Vivemos numa era em que sistemas algorítmicos e dispositivos digitais modulam nossos comportamentos de forma repetitiva e inconsciente. É pertinente perguntar: estariam esses processos tecnológicos explorando, ou até exacerbando, aquela mesma dinâmica de repetição descrita pela psicanálise? Algoritmos de redes sociais, por exemplo, operam fundamentados na repetição de padrões de interação. As plataformas digitais (Facebook, Instagram, TikTok etc.) utilizam algoritmos de recomendação que aprendem com o histórico de ações do usuário – cliques, curtidas e compartilhamentos – para repetir certos conteúdos ou formatos que mantenham sua atenção. Em outras palavras, há um circuito que busca manter o sujeito em um looping fechado que apelidamos de bolhas. A dinâmica algorítmica parece capturar o sujeito em um automatismo de repetição, onde um gozo particular está em jogo: o sujeito goza em scrollar infinitamente, preso numa espécie de prazer compulsivo de ver/acessar conteúdo. Tal funcionamento nos remete ao acting out freudiano: em vez de se questionar sobre o que deseja, o sujeito age – desliza o dedo na tela, clica compulsivamente, consome informação. A psicanálise permite entrever que, por trás do apelo viciante dos feeds e notificações, talvez opere uma satisfação pulsional paradoxal. O sujeito moderno, tal como o neurótico freudiano, pode estar buscando algo no lugar errado: repete indefinidamente o gesto de conferir o smartphone, na esperança muitas vezes inconfessada de encontrar algo – uma novidade absoluta, uma resposta para sua falta, um evento que finalmente sacie sua curiosidade ou anseio. Mas, assim como o fort-da da criança nunca traz de volta a mãe ausente, o scroll incessante nunca entrega verdadeiramente o objeto capaz de pacificar a falta. Outro campo emblemático é o da inteligência artificial (IA), a exemplo dos algoritmos de geração de imagens ou de texto (tal como, os chatbots avançados). Essas IAs funcionam detectando padrões em vastos bancos de dados de linguagem/imagens e repetindo-os de forma estatisticamente ajustada para produzir uma saída “nova”. Contudo, essa novidade é fundamentalmente construída a partir do repetir-combinar do que já foi. Em termos lacanianos, poderíamos dizer que tais máquinas simulam o automaton do inconsciente: há inclusive autores que falam em um “inconsciente algorítmico”. A psicanálise pode contribuir aqui alertando que a IA, ao espelhar padrões históricos, tende a reforçar o já-dito e o já-feito, ou seja, repetir ideologias, preconceitos e narrativas existentes. Assim como no psiquismo o recalcado retorna travestido, na IA o que a sociedade recalca pode retornar automaticamente nas respostas da máquina. A IA nos confronta, desse modo, com uma repetição automatizada e ampliada daquilo que já somos. Por fim, as compulsões de consumo oferecem talvez a analogia mais direta acerca da compulsão à repetição freudiana. Vivemos numa sociedade de consumo em que sujeitos são incitados a buscar incessantemente novos, sempre transitórios e insuficientes, objetos de desejo – compras, bens, serviços, experiências -, de modo intrinsecamente repetitivo e insaciável. Ao articular consumo e repetição, iluminamos o fato de que o gozo reside nessa própria repetição insaciável. Retomando às reflexões teóricas e atuais aqui expostas, constatamos que o conceito psicanalítico de repetição é pertinente para a compreensão do sujeito e suas manifestações na contemporaneidade. Freud nos legou a ideia inquietante de que existe, no psiquismo, uma tendência a reencenar o passado, mesmo às custas de sofrimento – a compulsão à repetição como núcleo da resistência e como via para acessar o recalcado. Lacan aprofundou essa noção ao vincular repetição à estrutura da linguagem e ao limite imposto pelo real. Repetimos, em última instância, o que não se pode plenamente dizer nem conhecer, repetimos em torno de uma falta. Ao transpor esse arcabouço para os fenômenos atuais, percebemos que muitos dos impasses do sujeito na era digital não são novos, mas sim novas roupagens de uma dinâmica já conhecida pela psicanálise. A era digital poderia assim ser descrita, sem grande exagero, como a era do gozo repetitivo. A máxima conectividade e o estímulo incessante não redundaram em esclarecimento ou satisfação duradoura, mas antes numa aceleração dos circuitos de repetição. Por outro lado, a própria psicanálise oferece a possibilidade de elaboração a partir da repetição. Em Recordar, Repetir e Elaborar, Freud apontava que é por meio da repetição que será possível a elaboração. A articulação empreendida no ensaio tem o objetivo, portanto, de atualizar nosso olhar clínico e teórico. Os pacientes de hoje trazem para o consultório suas repetições nas redes sociais, suas ansiedades geradas por algoritmos, suas adições a compras online ou jogos virtuais. Esses conteúdos demandam do analista uma escuta capaz de reconhecer, nesses novos dialetos do sintoma, a velha estrutura do conflito psíquico e da repetição pulsional.


 
 
 

3 comentários


Creusa Santos
Creusa Santos
25 de set.

Gostei demais, principalmente quando se liga aos sintomas repetitivos, inconscientes, referente as redes sociais, trazendo Freud e Lacan em uma observação contemporânea.

Editado
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Pollyanna Almeida
Pollyanna Almeida
19 de ago.

Seu texto foi um presente Renata. você trouxe Clarice, Freud, Lacan e a IA, de uma maneira tão acessível, sou fã das suas falas e dos seus textos, eles me ensinam demais. Obrigada pela generosidade com que você transmite seu saber.🥰

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Renata Wirthmann
Renata Wirthmann
22 de ago.
Respondendo a

obrigada😍

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